[ARTIGO] A alma da cidade

Algumas expressões adquirem conotações diversas daquela de sua origem, bairrismo é uma delas. Em sentido lato é o conjunto de qualidades de quem mora em determinado “bairro”, se orgulha dele e defende seus valores, o conceito expande-se para cidades e até países.

Em princípio é uma atitude positiva, amar o seu “chão” é condição para respeita-lo, desejar que seja respeitado e desenvolver a cidadania; infelizmente a ideia passou a associar-se a exclusivismo, chauvinismo, e às piores práticas de preconceito contra os “não residentes”, “alienígenas”, estrangeiros, como se apenas os nativos possuíssem virtudes reais.

Muitos moradores de Curitiba têm pela cidade o que se pode chamar de bairrismo no bom sentido, ainda veem a preservação de áreas verdes, o razoável sistema de transporte coletivo, a boa limpeza urbana, até o clima um tanto desequilibrado, como fatores de valorização da cidade e de morar nela.        

Além desses aspectos, há que elevar a alma da cidade, expressa pelos seus habitantes, artistas, pensadores, músicos, e dentre eles Poty Lazzaroto, que cantou como ninguém a sua aldeia e tornou-se universal.  

Napoleon Potyguara Lazzarotto, conhecido como Poty, foi desenhista, gravurista, ceramista e muralista. Sua importância para as artes plásticas brasileiras, em especial as paranaenses, pode ser constatada em um passeio por Curitiba, mesmo quem não o conhece tem contato quase diário com suas obras murais, são mais de quarenta: o frontão do Teatro Guaíra, painel da praça 19 de dezembro, no Centro Histórico, e muitas outras em vários lugares da nossa e de outras cidades. Quem circula pela região do Alto da XV, passa por um de seus painéis à frente do reservatório elevado da Sanepar, que representa a evolução do saneamento básico no Paraná; da mesma forma, no Aeroporto Afonso Pena há outro intitulado “o eterno sonho” que retrata o voo do homem, de Ícaro à viagem espacial. O estilo de Poty é característico e, embora pareça simples, inimitável.

Ele realizou também obras de menores dimensões e de qualidade excepcional, algumas de suas melhores gravuras são pequenas em tamanho, embora imensas na qualidade. Em 2014 algumas de suas obras foram tombadas pelo Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico e reconhecidas como Patrimônio Cultural do Paraná, e estão localizadas em áreas públicas, como os painéis do Palácio Iguaçu e Teatro Guaira.

Poty ilustrou obras de grandes escritores brasileiros, como Guimarães Rosa e Dalton Trevisan. No caso de Dalton, a parceria vem desde os anos 1940 com a histórica Revista Joaquim, e pode-se afirmar que tanto Dalton quanto Poty são representantes inequívocos de uma maneira de ver a cidade de Curitiba e seus arredores, com os casais em guerra permanente do “Vampiro” expressando modos de avir e desavir característicos e, da mesma forma, as paisagens urbano-bucólicas de Poty, seus carroções de “verdureira italiana”, seus santos e personagens históricos, as paisagens que todos conhecemos e amamos retratadas de modo pessoal.

Todo fato cultural é antes de tudo um fato, torna-se discurso, ação ou objeto após ser processado e catalisado por uma pessoa, grupo de pessoas, ou uma nação. Depois, numa imbricação interessante e, quase sempre, instigante, produz novos fatos, ações, discursos e objetos. A melhor arte é a que reflete de modo inequívoco o fenômeno primordial, expressando-o segundo uma visão nova, peculiar, até revolucionária, que nos permite estabelecer a teia de significados da realidade, por meio das práticas do trabalho, das crenças, modos de viver de cada comunidade, compartilhamento dos sonhos e aspirações.

Poty nos revela a cidade em que moramos e, também, quem somos.    

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil. wcmc@mps.com.br