Os eufemismos nossos de cada dia

O diretor-presidente da Vale declarou recentemente que “A Vale é uma joia brasileira e não pode ser condenada por um acidente que aconteceu numa de suas barragens por maior que tenha sido a sua tragédia”.      

O nome correto para o que aconteceu em Mariana e em Brumadinho é crime, crime constituído por descaso, ganância, incompetência, arrogância, descuido, e tudo que define a sucessão de eventos e negligência que resultou em sofrimento e destruição. Mas para a Vale, e até para uma parte da imprensa, o que ocorreu foi um “acidente”, um “incidente”, uma “fatalidade”, termos que podem se aplicar a eventos fora de controle como chuvas torrenciais ou terremotos, mas não a acontecimentos evitáveis por ação ou previsão humana.

Muito utilizada atualmente a figura linguística do eufemismo – mecanismo que tem o objetivo de suavizar uma palavra ou expressão que possa ser rude ou desagradável – em nossos meios de comunicação social, principalmente em questões políticas, empresariais e na tragédia de Brumadinho.

Metáforas, uso de uma expressão ou palavra no lugar de outras, como “melhor idade” ou “passou desta para melhor” são de uso comum, uma pesquisa recente parece ter demonstrado que, numa conversa normal, usamos em média 4 metáforas por minuto, seja por não querermos ou não conseguimos mesmo expressar com correção absoluta aquilo que sentimos.

Oras, o eufemismo é uma espécie de metáfora, o que o distingue é a intenção deliberada de enganar, de transformar em palatável algo que não o seria; e uma série de funções sociais são exercidas por ele, que representa alternativas para não utilizarmos algumas locuções, que embora a mais das vezes verdadeiras, são reprimidas para finalidades publicitárias, marketeiras, de engodo, para, enfim, “salvar a cara”.

Evidentemente, uma dada alocução pode ser rotulada como eufemismo dentro de determinado contexto, na dependência das intenções daqueles que a utilizam, e comumente sua interpretação deverá ser ambigua, ou seja, deliberadamente o ouvinte poderá entender literal ou figuradamente, inclusive para preservar o falante de algum processo. Na expressão “danos colaterais”, por exemplo, podemos entender morte de pessoas, perda de suas casas, de seus animais de estimação, da capacidade de sustento, pobreza extrema a vista, morte de filhos, de tal forma que a verdade pareça bem mais suportável, e então os sinônimos naturais dos vocábulos podem não obter o mesmo efeito cognitivo, social, estilistico.

O uso de eufemismo está se transformando numa espécie de engenharia semântica, que elimina os efeitos indesejáveis da palavra que substitui, ou por meio dele pode burlar algumas leis, ou pelo menos as normas do bom senso; e quando o ouvinte não está particularmente cooperativo, iniciando uma interpretação literal de alguns deles, de forma geral a ironia passa a ser utilizada, culpando aquele que deveria ser o destinatário passivo como intransigente e agressivo.

Evidentemente alguns eufemismos tiveram usos bastante intensos, e algumas vezes se naturalizaram, a ponto de já não serem distinguidos das concepções naturais, e o significado original vai sendo perdido ao longo dos anos, transformando-se em simples sinônimos de algo que antes amenizava. Inclusive, uma mesma comunidade linguística pode ter grandes variações no que é, ou não, um sentido eufemístico.

Um velho ditado de língua espanhola diz que aquilo que não se pode falar eufemisticamente deve ser calado, eles o usam para ensinar que certas realidades não devem ser ditas cruamente a crianças ou aos muito jovens.

No entanto, denominar “acidente” um fato catastrófico, provocado por desdém pela vida humana, constitui uma das formas mais cruéis de eufemismo que temos utilizado em nossas mídias e rede sociais. Não é isso o ensinado nas escolas, sequer para as crianças.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.  <wcmc@mps.com.br>