Nostalgia e romances pós-modernos são temas do disco “Fraternidade-Terror” da Cidade Dormitório

Crédito: Hemilly Souza

Uma sonoridade que caminha entre a música brasileira setentista e o pós-punk, o industrial e o rock alternativo, a psicodelia e o experimental faz uma ponte entre o passado e o moderno no primeiro disco de estúdio do trio sergipano Cidade Dormitório. Após uma série de singles e um EP, os músicos apresentam sua franca evolução em “Fraternidade-Terror”, já disponível nas principais plataformas de streaming.

Confira o faixa-a-faixa abaixo

Ao unir conceitos aparentemente tão contraditórios, a banda explora paradoxos para criar canções que refletem os tempos atuais sem parecer descoladas do passado. “Fraternidade-Terror” caminha uma linha tênue entre canções embaladas por nostalgia e romance, enquanto outras soam cinzentas e embebidas nos mais profundos dramas humanos. As referências filosóficas são sutis, o desalento não.

O contraste é, também, estético e discursivo. O próprio conceito da cidade dormitório – distante geograficamente e culturalmente dos grandes centros – escancara essas noções e provoca o pensamento para além das limitações. “Homo Erectus Plus”, quarta faixa do trabalho que conta com a participação de lllucas, traz no título o humano moderno e suas telas que cabem na palma da mão – apenas para sucumbir ao peso dos muitos gigas de retrocesso em suas costas. Já em “Cinto que aperta e esta fivela me machuca”, surge a constatação inevitável de que a história do sujeito e do mundo à sua volta se perde em uma linha do tempo infinita de auto-descarte. 

“‘Fraternidade-terror’ é um nome que se inscreve também através das guitarras e pratos que tentam ser mais raivosos numa estridência que nos pareceu necessária a se retratar em certos momentos e que aglutina a ironia de uma liberdade guiada para catástrofes. A fraternité atravessada pelo que está colocado aos nossos olhos, pelas nossas percepções e pelo o que nos atravessa. Do mais íntimo suspiro aos passos ofegantes de alguém por aí”, revela o grupo.

A capa ilustrada por Emanuelle Alencar, artista plástica de Teresina (PI), incorpora toda essa complexidade. Cidade Dormitório encontrou em seu trabalho um diálogo importante entre as multi impressões do urbano, a vigilância moderna em tons frios que desafiam a arquitetura pós-moderna, e as provocações presentes em “Fraternidade-Terror”. Essas sonoridades e temáticas haviam sido antecipadas por dois singles lançados em 2019: “Relacionamentos são extremamente complicados e meu cachorro sabe disso”, faixa que ganhou uma ilustração de capa da designer Aliens Of Camila; e “Homo Erectus Plus”, lançado em formato footage com lyric video.

“Vivenciamos dramas, romances que intensificam os nossos afetos e nos chacoalham diante de relações sociais que nos dão certeza de que a vida é sim uma doideira. Para além disso, as paixões se acompanham dos registros cotidianos que flagramos, para além delas mesmas, por aí. Esperamos que as percepções possam estar com tons menos felpudos de shoppings limpos e esterilizados e mais ásperos, porque a vida tem suas asperezas e contrastes, assim como as paredes e paisagens diferenciadas num centro da cidade podem lhe proporcionar à vista e ao tato”, analisa a banda. 

Criada em 2015, a Cidade Dormitório é formada por Yves Deluc (guitarra e voz), Lauro Francis (baixo) e Fabio Aricawa (bateria e voz). Eles começaram a tocar juntos em jam sessions experimentais e despretensiosas que logo foram encontrando uma linguagem musical e lírica comum, pautada por um humor peculiar e irônico que viraria uma das marcas do grupo.

No ano seguinte, a Cidade Dormitório começou a se destacar nos palcos, sendo a banda escolhida para abrir o III Festival ZONS e o Festival DoSol em Aracaju. Em 2016 ainda,  foram indicados pela TV Cidade como uma das revelações de Sergipe. Toda essa experiência e burburinho em torno do projeto se transformou em seu primeiro lançamento.

“Esperando o Pior” (2017) é um EP que foi gravado e mixado por Leo Airplane e lançado pela Banana Records e que levou o som da banda para outras fronteiras longe do nordeste. “Setas Azuis” tocou em rádios na Argentina e a faixa “Agora o meu coração é um lixeiro azul escroto” chegou a quase 1,5 milhão de plays. Coroando essa jornada, a Cidade Dormitório realizou uma turnê pelo sul e sudeste do Brasil, com direito a uma passagem por um dos espaços mais assistidos da internet: o Showlivre.

Após dividirem palcos com nomes como Chico César, The Baggios, Maglore, Vivendo Do Ócio, Vitor Brauer, Scalene e Boogarins, eles fazem de “Fraternidade-Terror” um reflexo do Brasil atual e criam uma relação direta da banda com as suas raízes e com a cidade que faz parte do nome do grupo.

Após o lançamento, a Cidade Dormitório quer pegar a estrada, continuar surpreendendo e levar a música sergipana para diversos lugares do país. O álbum está disponível em todas as plataformas de streaming de música.

Arte de capa por Emanuelle Alencar

Tracklist:

 

1 – Cinto que aperta e essa fivela que machuca [5:36]

2 – Besa (beijos) [4:24]  

3 – Homo erectus  plus [5:35]

4 – Relacionamentos são extremamente complicados e meu cachorro sabe disso (5:38) 

5 – Aribé II (associação livre) [5:02]

6 – Bad sem fim [4:20]

 

Ficha técnica

 

Guitarras: João Mário e Yves Deluc

Baixo: Lauro Francis Carvalho

Bateria: Fábio Aricawa

Teclas: Leo Airplane

Vozes: Yves Deluc

Backing Vocals: Fábio Aricawa

Arranjos: Fábio Aricawa, Heder Nascimento, Yves Deluc, João Mário, Lauro Francis Carvalho

Letras: Yves Deluc, Fábio Aricawa, Lucas Rocha.

Captação da bateria: feita no Óri estúdio por Dudu Prudente.

Captação das guitarras: feita por João Mário em sua casa.

Captação da voz e baixo: feita por Leo Airplane no Ddb Estúdio. 

Mixagem e Masterização: Leo Airplane

(Com exceção da mixagem de “Bad Sem fim” que foi executada por Fábio Aricawa tal como as teclas da referida faixa. A captação do violão desta faixa foi feita por Danilo Duarte e o violão foi executado por Yves Deluc.)

Capa: Emanuelle Alencar

Faixa-a-faixa, por Yves Deluc:

“Cinto que aperta e essa fivela me machuca” atenta a momentos que nunca existiram no plano íntimo vivido do eu, mas que são plenos e conhecidos no subjetivo do sistema, nas brechas entre sociabilidades. 

“Besa (Beijos)” demonstra a insuficiência do eu diante do outro no lócus de uma relação, no andar da situação isto muda ao outro estender a mão trazendo segurança, os sentimentos fortalecem os atores sociais nos percalços de um mundo de valorações arbitrárias. 

“Homo Erectus Plus” brinca em tons frios ao visualizar o sujeito moderno, de celular com a mais alta tecnologia em mãos, mas com um retrocesso de muitíssimos gigas sobre suas costas. A modernidade não parece fazer evoluir outra coisa a não ser o drama de ser alguém. 

“Relacionamentos são extremamente complicados e meu cachorro sabe disso” põe as relações amorosas na modernidade em xeque de forma cômica, não precisa-se falar de Bauman direta e profundamente para perceber o quão complicado isto aqui está sendo, até o cachorro sabe… 

“Aribé II (Associação livre)” age provocativa aos bem encaixados e ritmados versos de planejamentos chicletes sabor amônia da indústria cultural. Não é esse o fator principal, mas a literal associação livre em versos cuspidos cochicham o que é estranho, passeando entre seres, comportamentos e crises na sociabilidade. 

“Bad sem fim” nega a si, mas não totalmente. Um fim de relacionamento prende pés na porta dos fundos, é entre o que deve ou não ser feito que esta canção se encontra, uma canção de término. Inspirada em Daniel Johnston, ela acaba por se tornar uma pequena homenagem.