Quaresma em quarentena / Por Wanda Camargo

O período de Quaresma, cerca de quarenta dias decorridos entre o Carnaval e a Páscoa, tem grande significação para igrejas cristãs, entre elas a Católica e a Luterana; representa um tempo de preparação para a cerimônia pascal, basilar para o Cristianismo, e inclui abstinência do consumo de carne, caridade, orações e reflexão.  

O numeral quarenta tem um significado importante na tradição, pois o dilúvio durou esta quantidade de dias, foi o tempo que Noé passou com a família e os animais na Arca, e mesmo após cessada a chuva, houve necessidade deste número de dias antes de tocar a terra firme. Esta mesma parcela de dias Moisés passou no monte Sinai para receber as Leis que regem até hoje o dever moral da maior parte dos povos, e Jesus retirou-se para o deserto por quarenta dias e quarenta noites, sem comer e refletindo profundamente antes de iniciar sua vida pública.

Estamos todos em quarentena, com o cataclismo causado pela Covid-19 cobrando seu preço em vidas e destruição de economias; por enquanto a maneira mais racional de tentar reduzir seus efeitos na saúde pública é o distanciamento social, algo recomendado pela Organização Mundial da Saúde e seguido pela maioria dos países.  Devemos permanecer isolados, o que infelizmente não se aplica aos heróis de saúde e de informação, agentes de segurança, entregadores de comida, funcionários de farmácias e supermercados, da limpeza urbana, coleta de lixo, saneamento, energia elétrica, transportes, postos de combustíveis. Estas atividades não podem ser realizadas online ou em home-offices, e sem elas nossa organização social ruiria, mas com escolas, comércio, indústrias e serviços parados temos uma quarentena de escala planetária, e alguma consciência de que precisaremos mudar. 

Em tempos de reciclagem de nossas modalidades de trabalhar, de ensinar e principalmente de aprender, mesmo nesse tempo mais laico em que as práticas quaresmais foram se abrandando, e o jejum limita-se a refeições com peixes e frutos do mar na Sexta Feira Santa, para os mais privilegiados, e o próprio Papa João Paulo II teria dito àqueles mais pobres: “se tiverem o que comer, comam”, num muito humano afrouxamento de uma regra que só parece fazer sentido simbólico, mais do que nunca devemos ponderar sobre novas formas de viver.

A consciência de que há grupos enormes de pessoas que não praticam a quarentena por impossibilidade física, econômica e financeira: os moradores de pequenas habitações superlotadas em comunidades carentes, os moradores de lugar nenhum, marquises de prédios, bancos de praça, baixos de pontes e viadutos, os andarilhos que já desistiram até de morar na rua, os presidiários empilhados em celas. A esses não faz sentido aconselhar que se mantenham distantes dos demais, não há espaço para isso.

Para os trabalhadores sem vínculos formais, que dependem de sua atividade diária para sobreviver, à espera de um auxílio de emergência, pequeno e prometido para três meses, que parece nunca chegar, definitivamente não tem sido simples. Embora seja pouco mais da metade de um salário mínimo, pode representar a diferença entre a vida e a morte para milhões de pessoas, mas a infernal burocracia estatal ainda não definiu de modo eficaz como este dinheiro chegará a todas as pessoas que não tem conta bancária, acesso à Internet, e que mal sabem assinar o nome. 

Então, nós que podemos nos dar ao luxo algo duvidoso desta prisão domiciliar enquanto a peste ronda nossas vidas, talvez devêssemos praticar a Quaresma, independente de que religião ou não religião tenhamos. Aproveitar o tempo para pensar nos excessos de consumo de alimentos e outros, praticar a solidariedade com os que nos prestam serviços e que perdem renda, ser solidários com vizinhos e não tão vizinhos, meditar e refletir no mundo e na sociedade em que vivemos e, sim, pela qual somos responsáveis também. 

Com esta Páscoa, que nosso mundo renasça.   

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil. assessoria@unibrasil.com.br