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Bater nas crianças: um projeto político

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Daniel Medeiros*

“Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos.”(Carlo Ginzburg)

 

“Ninguém morreu por ter apanhado na infância”, é frase corrente na boca de homens – e não raro mulheres – que foram pais nos anos setenta, período no qual a violência institucional era vendida como virtude. Aliás, não esqueçamos que já a bandeira nacional, escolhida por um outro governo militar, adotou a frase do pensador positivista Augusto Comte, mas tirou o “amor” da frase, porque era pouco másculo. Ficou só “ordem e progresso”, depois rebatizado na ditadura por “segurança e desenvolvimento” ou simplesmente pelo slogan “ame-o ou deixe-o”.

Nas casas de classe média, os pais que trabalhavam para mal pagar as prestações da televisão colorida que ficava exposta na sala como troféu pelo seu esforço em ser dedicado, viam os filhos rebeldes como um sinal de falta de patriotismo e de fracasso da sua autoridade particular. E, por isso, lições precisavam ser ensinadas. Não lição de amor, mas de obediência, que era o nome certo daquilo que eles chamavam de respeito. “Precisa respeitar pai e mãe, fazer o que eles mandam, porque eles sabem o que é melhor para você”. Considerando os pais que apoiavam um regime que matava e torturava, saber o que era melhor para os filhos situava-se em um patamar que beirava o surreal,  embora fosse, na verdade, trágico.

E não havia com quem reclamar: o que eles faziam era o que o pensamento no poder chamava de Educação, pra não virar vagabundo, comunista, maconheiro. Todas essas palavras, faladas com asco, repulsão, como um palavrão inominável, associavam-se com liberdade de escolha e responsabilidade individual e eram negadas, porque isso desviava os jovens. Para proteger os filhos desse perigo, usavam, se necessário, a violência física. Para poder crescer e virar um adulto de bem, insistiam, enquanto o país estava sob censura, o Congresso sendo fechado ao bel-prazer, as pessoas sumindo nas esquinas, e as tenebrosas transações grassando longe dos olhos (dos pais pagadores de impostos, sem nenhuma conta atrasada), como a árvore solitária que cai no coração da floresta.

Nesse contexto devidamente justificado, apanhávamos pelas mais diversas razões: porque éramos crianças agitadas; porque respondíamos nossa mãe, porque não cumpríamos as tarefas que nos mandavam: lembro-me, dez, onze anos, ia até o Atapu, uma panificadora que ficava cerca de um quilômetro e meio de casa, beirando a rodovia expressa, comprar pão e leite, todos os dias. Nunca me aconteceu nada, exceto o medo de criança.  Medo de ir e medo de voltar e ter esquecido algo, receber uns cascudos e voltar de novo, mesmo que já tivesse escurecendo. Nada me acresceu essa experiência, não trouxe maturidade nem resiliência. Como tudo o que marcou a infância dos que apanhavam em casa, só trouxe medo.

Medo que era outro nome do respeito. Ter medo, baixar a cabeça, não responder, não reclamar, não dar um pio, vá para o quarto, vai perder o brinquedo, não vai sair por uma semana, e se fizer algo, apanha de novo. Para aprender. Nunca aprendíamos. Temíamos e sonhávamos com o fim do medo. Por isso a minha geração, no final dos anos setenta, início dos anos oitenta, abraçou com tanta fé e esperança a abertura política, o adeus melancólico dos militares, deixando o Planalto pela porta dos fundos, deixando para trás um rastro de crise econômica, miséria social e ignorância democrática. Mas com que fome avançamos para o pote da liberdade, querendo aprender tudo de qualquer jeito, sem amadurecer nada, porque já havíamos sofrido tanto.

Apanhei de cinta, de chinelo, de cabo de vassoura, tapa na cara, cascudo, beliscão, puxão de cabelo, no banheiro, tentando me esconder debaixo da cama e sendo puxado pelas pernas, na frente dos meus colegas porque cheguei 10 minutos atrasado de um festa – eu com 15 anos – meu pai na área esperando com o cinto. Às vezes ele chegava do trabalho, minha mãe dizia que tínhamos feito alguma coisa e ele dizia que no dia seguinte iríamos apanhar. Filosofava: não se pode bater com raiva que faz mal (para ele). A surra tem de ter um motivo, era pedagógico. Por isso, ele perguntava: por que estão apanhando? E nós assumíamos a culpa, confessando que tínhamos sido crianças, tínhamos tido a curiosidade dos jovens, e assim tirávamos das costas de meu pai a responsabilidade pelo castigo. E apanhávamos para aprender que ser criança e ser adolescente era ser uma coisa muito perigosa.

Agora temos, novamente, um governo cheio de militares, de discursos de pátria e de obediência. E um ministro da Educação que defende a “disciplina da vara”. Queria só deixar o alerta, para os que não viveram a experiência que a minha geração viveu. Apanhar só ensina uma coisa: a ter medo. E o medo só se transforma em uma coisa: ódio. Sim, funciona, é muito eficaz, por mais que a gente tente combater, o ódio vem, sempre vem.

Ele, o ódio, é a chave do sucesso. Não há regime autoritário que exista sem esse componente. Não se iludam: eles sabem muito bem o que estão fazendo.

 

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