Educação e bandeiras

Por Wanda Camargo*

Tivemos recentemente o episódio, não tão inocente, da exposição da bandeira do Brasil Império em determinado estabelecimento jurídico. Qualquer cidadão tem o direito de escolher a bandeira que hasteará em sua residência ou comércio privado, seja de país ou estado, time de futebol, partido político (com as evidentes exceções de partidos criminosos como o nazista, por exemplo). Mas quando se trata de instituições públicas há leis regulatórias sobre bandeiras, maneiras de hasteá-las e ordem de precedência com a bandeira nacional sempre em destaque sobre todas as demais.

O uso da bandeira imperial aparentemente foi um símbolo, como é a bandeira confederada em muitos estados do Sul dos Estados Unidos, manifesto de desagrado ou desaprovação a “tudo isto que aí está”; porem manifesto em lugar inadequado, e talvez em horário de trabalho, remunerado pelo Estado, dos que o realizaram.

Quando pessoas, instituições ou países atravessam fases difíceis surge a tendencia à nostalgia, à lembrança de tempos melhores, que talvez sequer tenham existido fora do efeito de imaginação edulcorada pelo voluntarismo.

Desta maneira a ditadura militar é lembrada, até e principalmente pelos que não a viveram, como um tempo de maravilhas em que a inflação era baixa e o crescimento alto, em que não havia tanto crime comum como hoje, e fomos tricampeões de futebol; quanto à Copa do Mundo, quem a ganhou foram nossos jogadores, e a participação do governo se resumiu a tentar influir, mal, na escalação do time; inflação baixa, crescimento alto, segurança pública, pleno emprego, existiram por pouco tempo e apenas perduraram por obra da brutal censura exercida sobre todos os meios de comunicação que não puderam divulgar seu desmonte e o desastre econômico quando a conta chegou; torturas e assassinatos também existiram neste tempo, e muitos.

No tempo do Brasil Império havia certa aparência de estabilidade política, garantida pelo suposto poder moderador de Pedro II, mas tal poder apenas se garantia por concessões cada vez maiores às elites escravagistas, a ainda assim o ambiente era permanentemente conflagrado. A economia do país era basicamente agrária, com todo o trabalho realizado por pessoas escravizadas; quando o Barão de Mauá tentou implantar algumas indústrias modernas foi bombardeado por todos os segmentos políticos e econômicos. Idealizar este tempo é ignorar estas realidades, quando alguns fazendeiros e comerciantes concentravam toda a riqueza, a imensa maioria da população tinha expectativa de vida inferior a quarenta anos e o analfabetismo era regra geral.

O hasteamento da bandeira imperial depõe contra um mínimo de conhecimento histórico de nosso país. Escravagista, as insígnias da tradição monárquica-cristã presentes na esfera que, em princípio representariam o planeta, o Brasão Imperial de 1822 continha: esfera armilar, a cruz de Cristo, a coroa do imperador, brasão, escudo, coroa de estrelas, um ramo de café fertilizado e um de tabaco, símbolos da riqueza das Casas Grandes, baseadas no trabalho escravo, extremamente cruel e que perdurou no Brasil bem mais que em outros países; persiste até hoje, raros são os meses em que não temos notícia de uma fazenda em rincões afastados, ou até mesmo patroas tratando suas empregadas domésticas, em “situação análoga à da escravidão”.

Ressalte-se que a riqueza proveniente de café e tabaco, assim como anteriormente a da cana de açúcar, muito pouco benefício trouxe à totalidade da população: não melhorou a qualidade de vida e o sistema educacional, que teriam trazido real evolução social. Algumas famílias ficaram riquíssimas, mas a comunidade beneficiou-se bem menos. Bem menos, mesmo sem considerar todo o sofrimento e sordidez do regime escravocrata.

Na instalação da República, o progresso brasileiro, pequeno e em pleno retrocesso, pretendia-se que estivesse na indústria, em função dos recursos naturais do País, simbolizados pelo verde-amarelo, conservados com a inserção da divisa positivista Ordem e Progresso, que seriam as metas nobres, o lema da República com formato filosófico e característica de uma política de Estado.

Baseado nas teorias de Auguste Comte, que preconizava o uso de métodos racionais e uma filosofia política para o caminho civilizatório de qualquer sociedade, considerando que no percurso em direção ao pleno desenvolvimento passamos por três momentos de compreensão do mundo: num primeiro estágio nossa explicações são baseadas na religião e nas crenças, num segundo momento entramos num raciocínio metafísico, com explicações mais abstratas e generalizantes, e finalmente atingimos o estado ideal em que tudo é explicado pela Ciência, num cientificismo ideal, positivo e definitivo. Hoje aparentamos estar de volta ao primeiro estágio, a religião demonstra novamente dar as cartas na vida política, deixando a esfera íntima onde sempre esteve presente e é salutar, para ditar regras comunitárias e normas de comportamento gerais.

É como se meus vizinhos que não fossem exatamente iguais a mim estivessem todos errados. Racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, violência, falta de racionalidade, tudo volta ao cardápio diário, e  escola de qualidade até hoje não teve sua bandeira hasteada.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.