Ruas tomadas de alegria

Daniel Medeiros*

 

Lembro-me bem quando tudo começou. Foi minha primeira eleição, para governador, em 1982. Em 1965, os brasileiros haviam votado pela última vez para esse importante cargo e ousaram escolher dois políticos da oposição – Negrão de Lima, pela Guanabara  e Israel Pinheiro, por Minas Gerais -, e os militares pressionaram o general presidente Castelo Branco para acabar com aquela bagunça. Os militares já haviam acabado com a eleição direta para presidente e agora também para governador. Depois, os prefeitos das capitais também entraram na lista. E os municípios das áreas consideradas de segurança nacional, e os que se encontravam em áreas de fronteira. Sobrava pouca coisa.

O tempo passou, não há mal que dure para sempre, e veio a anistia, a volta dos partidos e, enfim, as eleições. O voto era ainda na cédula, os mesários organizavam a bagunça extrema das urnas de lona que iam sendo abertas e os votos contados e anotados em grandes planilhas, com caneta. Lembro-me que alertavam para anular o voto, e não deixar em branco ou então muitos mesários preenchiam por conta própria. Eu votei, com gosto.

E ficou o gosto de quero mais, as coisas já voltando à normalidade, por que não votarmos também para presidente? Martinho da Vila e Rindo Hora transformaram o desejo de tantos em versos na canção “Meu país”: “E pra melhorar/ Falta só mesmo é votar pra presidente/ Sem participar /Não vou ficar sempre assim/ Tão sorridente”.

No embalo do desejo e no oportunismo que é, de resto, próprio da profissão, o deputado mato-grossense Dante de Oliveira propôs uma emenda constitucional para restabelecer a eleição direta para presidente já na eleição seguinte, que estava marcada para ocorrer no dia 15 de janeiro de 1985. Era o dia dois de março de 1983. Em um primeiro momento, a coisa ficou por isso mesmo, algo no campo do fantasioso, do quase delirante. Mas, devagar, foi surgindo a pergunta entre os mais afoitos: “e por que não?”.

Teotônio Vilela, um ex apoiador do regime militar, regenerado após ver e ouvir muito mais do que sua dignidade era capaz de suportar, foi o primeiro a propor, em um programa de televisão, a formação de uma frente ampla de partidos para organizar manifestações em favor das diretas. No dia do aniversário do golpe, 31 de março, houve a primeira manifestação, timidazinha, em Abreu e Lima, Pernambuco. Em junho teve outra, em Goiás, e em novembro, uma já mais bacanona, em São Paulo. Aliás, no dia desse comício morreu o Teotônio Vilela. Pouco antes, em setembro, Fafá de Belém tinha gravado a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, “O menestrel das Alagoas”, um dos hits dos comícios, junto com “Coração de Estudante”, também da dupla.

Em 12 de janeiro, 40 mil pessoas encheram a rua quinze, em Curitiba.  Eu estive nessa. E aí não parei mais. Encantei-me com aquela gente toda ali, muitos sem saber direito quase nada sobre as complexas questões nacionais, mas muito empolgados com a ideia de que votariam para a pessoa encarregada de resolver essas questões, como se esse voto imprimisse um “quezinho” delas próprias no Poder.

No dia 25 de janeiro, aniversário de São Paulo, na praça da Sé, 300 mil pessoas se espremeram para pedir Diretas Já. Começávamos a acreditar. Será possível? E se? Os comícios se espalharam por todos os lugares: João Pessoa, Olinda, Maceió, Belém, Recife, Manaus – 400 mil pessoas em Belo Horizonte, que beleza, também estive lá-, Aracaju, Anapólis, Campinas, Uberlândia, Campo Grande, Florianópolis, Natal e, no dia 10 de abril, um milhão de pessoas no comício da Candelária, no Rio de Janeiro; tava lindo, havia uma energia de alegria, as pessoas davam as mãos, abraçavam estranhos, parecia aquela música do Assis Valente de 1938: “Beijei na boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia…”.

O Congresso marcou a votação para o dia 25. Ainda dava tempo pra mais encontros, pra gente tomar as praças, os parques, as ruas, cantando, sorrindo, não havia nem mesmo raiva pelos militares, como se fossem uns caras cafonas ultrapassados que sumiriam no retrovisor da nossa esperança em um futuro melhor.

No dia 16, a maior manifestação pública da história: um milhão e meio de pessoas no Vale do Anhangabaú, na capital paulista. Um oceano de gente, os sonhos velejando em sua cabeças, sonho da casa própria, da educação pros filhos, do hospital pra mãe, do salário melhor, do ônibus no horário, da consideração do policial, da dignidade, eita, que é só isso que as pessoas queriam naquele momento, sorrindo, agitando bandeiras, com faixas verde-amarelas amarradas na cabeça, enquanto os políticos peroravam fazendo hora para os artistas se apresentarem.

Tudo é lembrança pra acalmar a alma nestes tempos tristes, de gente indo pras ruas prometendo apagar com as poucas manchas de verde, os pequenos oásis que ainda restam de nossos projetos no deserto do contemporâneo. Tudo é lembrança necessária. Como disse Gonzaguinha, em uma de suas belas canções: “Eu acredito é na rapaziada/ Que segue em frente e segura o rojão…”.

 

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com 
@profdanielmedeiros
 

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