As razões da isenção

Daniel Medeiros*

 

Dentre as narrativas contemporâneas que pululam nas redes sociais, uma das mais correntes é a do “isentão”. Ele seria aquele cidadão que não escolheu um lado dos dois lados possíveis da política brasileira: o da autonomia individual e o do cuidado com o outro. Um dos lados apregoa seus esforços pessoais e exige o reconhecimento deles na escala de bens morais, afirmando seu modo de vida fundado no núcleo familiar, no trabalho e na religião. Crê que o mundo é construído a partir do indivíduo, e as relações familiares e de amizade são as coisas mais importantes do mundo. O Estado só serve para atrapalhar e para pôr em risco os seus bens, além de constranger os seus valores – “valores da maioria” – com a imposição de arranjos “antinaturais” como se fossem coisa comum.

Os membros desse lado costumam ter uma postura sempre desconfiada e acreditam na importância de estarem sempre preparados contra a possibilidade de invasão de seu mundo. Por isso, defendem armas para todos e punições exemplares para os que não são como eles. Quanto aos seus próprios defeitos, evidentemente não são defeitos da mesma ordem, afinal, fazem o que fazem, quando fazem, pela família, pelos amigos ou pelos valores que prezam e que julgam serem mais importantes do que as regras ditadas pelos outros, que eles chamam de esquerdistas ou comunistas.

O outro lado vê o mundo pelo olhar do mundo, como já destacou Deleuze. Depois de olhar pela perspectiva do mundo, olham para o país, para a cidade, para o bairro e, finalmente, para a casa. Logo, para esse grupo, o bem estar global, a condição dos oceanos, das matas, do ar, dos rios, dos seres humanos, é mais importante do que as conquistas materiais que alguns têm, segundo eles, às custas dos outros. Não há riqueza íntegra, afirmam, e a meritocracia é um embuste que esconde sempre uma forma de exploração.

Da mesma forma, as construções sociais em torno de uma sociedade focada apenas em si e nos seus valores são igualmente opressoras, impeditivas de novas formas de organização, livres e desimpedidas, que respeitem a liberdade de invenção em vez da mera adaptação aos modelos oferecidos. Esse outro lado prima pelo cuidado com os desvalidos, não como caridade necessária para alçar postos na hierarquia do Eterno, mas como luta por reconhecimento de direitos usurpados. A pobreza não é uma natureza, mas uma condição, afirmam, peremptórios. E, como tal, modificável e, inclusive, passível de desaparecimento. Mas, para isso, é preciso demolir o edifício construído pela narrativa do mérito, da desigualdade como consequência natural da diferença entre as pessoas, do resultado como esforço pessoal e da aposta na realização do sonho. Os que pensam assim, esse lado os chamam de fascistas.

Evidentemente, cada uma dessas descrições poderia continuar por incontáveis parágrafos, como duas retas paralelas.

E aí reside o busílis, que é o de imaginarmos que se trata de um paralelismo sem quaisquer pontos de contato. É certo que, como ensinam os matemáticos, até as paralelas se encontram no infinito, mas não é esse o argumento. Somos pessoas comuns, na nossa imensa maioria e, na condição de pessoas comuns, somos tocadas por diversos pontos das narrativas dos dois lados, consciente ou inconscientemente, de forma clara ou confusa,  formando, com esse zig-zag entre os dois planos, geometrias diversas: cubos, octaedros, icosaedros e outros, em escala infinita. O engodo, portanto, está na organização do real em dois planos paralelos, sem áreas de escape, como duas bandejas separadas, sobre as quais as pessoas são depositadas de acordo com um check list prévio.

As autorizações para ocupar um lugar na bandeja variam de acordo com o rigor do momento e, atualmente, o rigor tem sido orwelliano, vide o caso da deputada Tábata Amaral: votou contra a reforma da previdência e, por isso, ganhou a marca do demônio. Outro dia, li que não poderia ter sido diferente, já que ela participou de olimpíadas de ciências. Ora, dizia a narrativa, “quem acha que educação é competição, não poderia dar em boa coisa mesmo”. E quem lembra da Marina Silva, ou mesmo do Cristóvão Buarque, e tantos outros defenestrados da nau dos “sensatos” defensores do lado “bom” da História?

Agora, vemo-nos diante de um desafio matemático: conseguir vencer um candidato à reeleição. Para isso, é óbvio, precisamos de mais votos que ele. E como consegui-los? Se tivermos ao nosso lado apenas os que não votaram nele na eleição passada, perderemos. Precisamos, portanto, também dos votos dos que votaram nele e se arrependeram, mas que, igualmente, não votaram para o outro lado por discordâncias múltiplas e que querem ver resolvidas ou matizadas. Assim, uma nova eleição implica uma nova composição do quadro de bens, de valores. Se permanecermos com uma visão fundamentalista de mundo, sem construir novas aberturas, novas pontes, novas janelas e novas praças com muitos bancos para encontros e para longas conversas, conversas desarmadas de cobranças e de lições, corremos o risco de consolidarmos uma República de guetos. E sobre guetos, creio que a História já nos ensinou bastante.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
 

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