Com açúcar, com afeto

Daniel Medeiros*

 

Nos anos 50, em Copacabana, vivia uma família de classe média alta que educou suas duas filhas com bastante liberdade. Uma tornou-se modelo de sucesso. A outra, música e cantora. A mais velha passou a viajar bastante e, para não deixar a mais nova muito solta, os pais pediram que ela levasse os amigos em casa. E eles foram. Primeiro, os mais próximos, como Roberto, Ronaldo e Sérgio; depois, os amigos dos amigos e, por fim, todo mundo que tinha uma música guardada na gaveta e que queria dividir seu talento e suas ideias com aquele grupo que virava noites conversando, tomando umas biritas, flertando e, é lógico, cantando. 

A menina foi crescendo e aparecendo. Apesar de cantar e tocar muito bem, virou “musa” do movimento – como se fosse um ursinho da sorte – e não parte fundamental da sua existência, como de fato foi. Apesar do enorme sucesso daquelas músicas que falavam de mar, barcos, banquinhos e violões – ou talvez até mesmo por isso –  a moça de personalidade forte foi se cansando, tudo foi ficando meio chato. Um dia, um dos muitos amigos, o Carlos, apresentou-lhe umas fitas com as músicas que estavam sendo compostas bem ali pertinho do seu apartamento, bastando olhar um pouco para cima, para os morros que circundam a Zona Sul. A moça se entusiasmou com aquelas letras e com aquele ritmo e foi até lá para conhecer os bambas. Aprendeu a tocar as suas músicas, mas imprimiu nelas o seu balanço,  a sua impressão digital, e o resultado foi uma coisa diferente de tudo. Nascia ali o que, por falta de nome melhor, chamou-se de “música popular brasileira”. Com a música, veio o teatro e acabou virando um show com a moça, com um dos bambas do morro e com um migrante lá do Nordeste, do Maranhão, e essa voz se juntou à voz da moça e com a voz dos bambas a tal MPB foi se consolidando como algo de respeito, apesar do despeito de alguns, magoados com aquela mudança que a moça estava fazendo, como se ela não pudesse ter a própria opinião. O espetáculo foi um estouro e só se falava dele. E então, a moça começou a achar aquele sucesso todo muito chato. E passou a vez dela para outra menina que tinha conhecido na Bahia, uma moça de voz possante, irmã mais nova de um compositor de muito talento. E sem avisar nem mandar recado, agora, a moça de Copacabana já estava interessada no cinema que uns caras vinham fazendo, uma coisa nova, e era com eles que queria estar. Namorou com um e acabou casando com outro. Mas daí, aos pouquinhos, também foi se cansando. Lembremos que tudo nessa época era protesto, tudo era “vamos fazer a revolução”, e a moça de muita personalidade disse: Tá muito chato isso. Agora quero falar de amor!”. E foi com um outro rapaz tímido, vindo de São Paulo e que foi na casa dela mostrar suas músicas que ela resolveu gravar coisas de amor. Apresentaram-se em um festival de TV, que era muito visto nessa época de tenebrosas transações, e a música que eles cantaram fez  um grande sucesso. E a moça e o rapaz tímido foram envolvidos por essa onda que tirou-lhes os pés do chão e os jogou com força na praia cheia de gente enlouquecida gritando o nome deles. E ela disse, “não, isso é demais, não quero. É muito chato. Quero ter um filho e ser dona de casa”. E foi para Paris com o marido cineasta, virou mãe e não cantou por dois anos. Quando voltou, encantou-se com uns rapazes e moças que estavam criando uma espécie de movimento em torno do compositor que era irmão da moça baiana que ela deixou no seu lugar no show do teatro. Ela adorou e começou a cantar aquelas músicas alegres e divertidas deles. Os velhos amigos, tanto os da infância quanto o amigo tímido, ficaram tristes e até bravos com mais aquela mudança. Já os novos amigos fizeram um disco manifesto e colocaram a foto dela na capa. Mas ela já não estava mais tão na deles. Tinha uma outra moçada que parecia ainda mais divertida, um pessoal da Tijuca, que incendiava as tardes na televisão, que até fazia filmes e que tinha músicas que a moça gostou e quis cantar. Um pouco mais tarde, ela gravou um disco só com músicas deles e pôs sua voz e seu jeito e sua batida de violão naquelas letras de amor rasgado, e foi uma coisa linda! Os amigos antigos diziam que agora ninguém mais conhecia aquela moça e por isso muita gente a criticava, porque não era mais a musa da praia, não era mais a ativista do morro, não era mais. O que ela era? E ela ia em frente, cantando agora com um pessoal lá do Nordeste, um grupo de cearenses com letras fortes que ela interpretava com a voz suave e cadenciada e seu violão competente. 

A moça, às vezes falava, dava entrevistas e provocava muitas e nervosas discussões. Certa vez, perguntada sobre o Exército, disse na lata: “O Exército não serve para nada.” Outra vez, contou que adorava a vida de casada e que só queria cuidar dos filhos. Mas defendia o divórcio, “porque ninguém deveria ficar junto de quem não ama mais”. Mas também afirmou que gostava de músicas de homens que passavam a noite na rua enquanto suas mulheres esperavam ansiosas. Até pediu para o amigo tímido uma dessas canções porque queria cantar sobre isso. E ele fez, com açúcar e com afeto, uma canção sob medida para a moça. Ai, ai, quanta contradição! O que ela queria com isso?

E foi assim que viveu e brilhou. Um dia, a moça sentiu dores de cabeça, foi ao médico e descobriu que não ia viver mais. Deixou dois filhos, muitas saudades, e uma lição incrível de como uma só geração é capaz de transformar um país, com liberdade, inteligência e personalidade. E sem temer os patrulheiros ideológicos e os canceladores de plantão. 

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros