Como não debater com um fascista

Daniel Medeiros*

 

A primeira vez que conversei com um cidadão que negava o Holocausto foi uma experiência que ainda hoje me enche de dissabores. Tratava-se de uma pessoa que os antigos chamavam de “fino trato”, com voz modulada e gestos comedidos, sem nenhum apelo ao sensacionalismo. Falava como se o que dizia fosse resultado de muita reflexão, de extensa leitura e, portanto, apresentava seu argumento como quem afirma a mais inquestionável das evidências. 

Não havia, porém, o que objetar. Eu não me permiti reagir, porque esse era exatamente o propósito do meu pretenso interlocutor. No momento que eu dissesse “veja bem”, ele teria fincado sua estaca no mundo da materialidade dos possíveis, e seria uma parte entre as partes dos que afirmam coisas sobre o mundo. Essa estratégia é de fina tessitura, devo admitir, e por isso exige muita atenção e atitudes bem calculadas.

Ouvi o crápula com meu olhar fixado em um ponto atrás da cabeça de cabelos aloirados, já começando a rarear, e sequer registrei os traços do rosto. O momento que ele esperava se aproximava, e confesso que fiquei um pouco nervoso, pois precisava desempenhar o meu papel com exatidão e então sair o mais breve possível dali, antes que colocasse tudo a perder com a minha raiva e indignação. 

E chegou o momento, quando ele, calmo, como se a pergunta lhe ocorresse ali, sem maiores preparações, disse: “E então, não concorda com o que eu falei? Há uma lógica nos meus argumentos, não?”

Erra quem pensa que os canalhas agem a romper cadeiras na cabeça de seus adversários, fazendo ameaças e juras de morte. O verdadeiro canalha é um simulacro do bem pensante que nunca se deixa abalar, jogando dentro das regras da argumentação mais precisa, ouvindo com paciência e falando sem se atropelar, reivindicando o direito ao contraditório, apelando para fazer parte do clube dos que constroem modelos de realidade e fixam os paradigmas das ações. Iniciar uma conversa com esses ignóbeis, como se eles compreendessem a dinâmica do pensamento e do debate voltado para o aprimoramento do pensamento, é um erro de consequências graves, sendo a principal delas, a de trazer para dentro do universo plural e democrático no qual a Ciência se desenvolve, o vírus do obscurantismo e do negacionismo.

Nos anos 90, foi o que aconteceu com a historiadora Deborah Lipstadt, que teve de provar a um canastrão que o Holocausto de fato ocorreu e que milhões de pessoas morreram nas câmaras de gás construídas pelos nazistas. Sua equipe jurídica usou como estratégia, diante do tribunal britânico, a demonstração de que as fontes usadas pelo mentiroso em suas afirmações eram falsas ou distorcidas, embora, para um cidadão comum, ele parecesse até mesmo um historiador, pois escrevia livros grossos e citava muitos autores e mostrava muitos documentos. No entanto, o pacóvio era, como se sabia desde o começo, uma farsa que buscava cravar um prego no coração da Ciência e desacreditá-la por dentro. Ainda hoje me pergunto o que teria acontecido se os advogados da historiadora não tivessem conseguido demonstrar aos juízes britânicos que as artimanhas pseudo científicas do canalha eram uma forma de reativar o antissemitismo e reunir os diversos grupos de saudosistas do nazismo ainda espalhados pela Europa e pelo mundo.

Eu, diante do meu canalha – sorridente por ter achado que fez um bom trabalho e que me restava contestá-lo, abrindo flancos e brechas para a continuação de sua peroração – disse apenas “ok” e permaneci em silêncio. Depois de ligeira hesitação ele perguntou: “Só isso? Você não vai me contestar?”. E eu, finalizando minha conversa: “Não há nada para contestar no que você disse”. Na sequência – ah, que momento -, ele furou a bolha de sua falsa civilidade e começou a dizer coisas como “isso só prova que você não tem argumentos; quem cala consente; é sempre assim que vocês acham; eu sei que tenho razão e é suficiente”.

Confesso que não pude esconder um breve sorriso de satisfação diante da queda do castelo de cartas do farsante. Saí de cena sem olhar para trás.

Mais um canalha nazista ignorado.

 

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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