O império do senso comum

Daniel Medeiros*

 

A Ciência sempre precisou ser rigorosa para evitar erros que comprometessem suas afirmações, o que é fundamental quando se trata de questões que envolvem a vida, o futuro, a educação, a segurança das pessoas. Porém, com o tempo, a linguagem cifrada, altamente erudita da Ciência, levou o cidadão comum a deixar de acompanhar  ou se interessar pelos seus intermináveis debates sobre o que é certo e o que é errado a respeito das coisas que fazem parte de suas vidas. Na verdade, a Ciência não faz esse debate, mas é assim que parece ao cidadão comum: certo ou errado. Comer isso ou aquilo, agir assim ou daquele jeito, preservar isso ou não, acreditar nisso assim ou assado. Os dados e os longos arrazoados dos cientistas – que desmentem essa dicotomia, que demonstram que a vida é muito mais complexa e matizada – não estão ao alcance do cidadão médio e boa parte dos próprios cientistas se recusa a esclarecer as coisas de maneira mais clara e direta, sob a alegação de que o cidadão médio não entenderia mesmo. Diante desse fosso intransponível de conceitos e termos inalcançáveis, resta ao vulgo, quando muito, para parecer ter alguma compreensão das coisas, repetir os clichês reducionistas do tipo “Freud explica”, ou “é melhor ser temido do que amado” ou ainda, – sem que pareça ironia – “Penso, logo Existo”. É o império do senso comum contra a pequena república das ideias demonstradas com rigor. Esta é a guerra que está em curso.

Com as redes sociais, a explicação de qualquer coisa, de natureza científica ou não, foi limitada pelo número de caracteres, o que dificultou mais ainda a vida dos acadêmicos, dos pesquisadores e dos poucos mas empenhados cientistas em sua tarefa de divulgar seus conhecimentos para o grande público. Como fazê-lo? Para muitos, diante das circunstâncias, o melhor é não fazê-lo, afinal, a rede social não foi feita para conversas dessa natureza. Mantenhamo-nos em nosso espaço e os interessados que venham a nós, pois que não dá mesmo para explicar ao leigo coisas tão complexas e sofisticadas. Assim pensam muitos intelectuais das mais diversas áreas. E o império do senso comum agradece e avança sobre as fronteiras das cidades.

O problema é mais grave quando sabemos que as redes sociais tornaram-se a consciência viva de parte bastante considerável da humanidade. Tudo o que existe, existe porque está lá. E graças a essa plataforma de extensíssima amplitude,  velhas falácias medievais voltaram à moda, como o terraplanismo, por exemplo, ou a desconfiança das vacinas. Os cientistas – não tantos quanto o que se poderia esperar ou desejar – chegaram a se manifestar, destacando a irracionalidade desses mitos e avisando dos perigos para as pessoas em não confiar na Ciência. O problema é que, afogados em imagens e textos curtos, em memes e teorias da conspiração nos grupos familiares, o cidadão comum não chegou sequer a ouvir esses alertas. O algoritmo desses grupos não importou essas publicações que ficaram restritas às bolhas dos que já sabem e cujo saber não impacta nada nem ninguém.

O império do senso comum chegou também à Política e à Cultura. Ler sempre foi visto pelo cidadão comum como uma coisa pretensiosa, distante de sua realidade de trabalho duro e prazeres simples e tradicionais. Um teatro de comédia ainda vai, um filme de ação, uma novela com bastante drama, mas um livro com inovações estilísticas, fluxos de consciência intensos, quebra da temporalidade, neologismos e citações filosóficas, não, isso não é importante, não é “coisa da gente”, não faz parte “do nosso mundo”. 

O ressentimento dos intelectuais, com suas “verdades” difíceis de entender, também contribuiu para o avanço do império do senso comum. “Por que a verdade deles tem mais valor do que a nossa? Afinal, o que pensamos é o que todo mundo pensa, desde sempre, e agora vem essa história de que não está certo? Gente pretensiosa, vive querendo humilhar o sujeito simples e trabalhador, enquanto levam uma vida suspeita, sem valores, sem religião.”

As redes sociais beberam até a última gota desses discursos e formaram uma malha de trama fina e resistente que se espalhou por todos os lugares, prendendo a atenção de velhos, jovens e crianças, enquanto a Ciência e o pensamento crítico não entendiam nada e não faziam muito esforço para entender, exceto por meio de textos e discursos complicados e voltados para os iniciados. 

Hoje, o que vemos, é uma estratégia de terra arrasada dos representantes do senso comum substanciada em “verdades” como: polícia tem de agir sem medo contra os bandidos, por isso precisa de exclusão de ilicitude; escola tem de ser um lugar para disciplinar as crianças e jovens, por isso tem de ser militarizada; universidade é um antro de arruaceiros e degenerados, que não merece verba dos impostos dos cidadãos que trabalham; cuidado com o meio ambiente, proteção aos indígenas, tudo é conversa para atrapalhar o progresso, a produção e a geração de empregos; mulheres, negros, LGBTQA+, é tudo retórica divisionista para enfraquecer a ideia de Nação e de Pátria, afinal, somos só um povo, de gente ordeira, cristã e trabalhadora e não há esse negócio de racismo e preconceito por aqui, basta que cada um respeite a tradição e os costumes da maioria e pronto, não tem briga nem nada. 

A marcha do império do senso comum é sólida e ligeira.

Como lutar contra isso? Como desmontar as falácias que sustentam essa violência e essa discriminação? Essas são as perguntas que importam, para além de toda a divergência teórica ou debate crítico em torno da questão. Quem sabe, diante do abismo, os intelectuais deem as mãos e compreendam o ponto comum que os separa – e a nós todos – do fundo do abismo. Só então poderíamos vislumbrar alguma possibilidade de saída.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros