Caridade e o Capital de Deus

Paiva Netto

A Caridade, na sua expressão mais profunda, deveria ser um dos principais estatutos da Política, porque não se restringe ao simples e louvável ato de dar um pão. É o sentimento que — iluminando a Alma do governante, do parlamentar e do magistrado — conduzirá o povo ao regime em que a Solidariedade é a base da Economia, entendida no seu mais amplo significado. Isso exige uma reestruturação da Cultura, por intermédio da Espiritualidade Ecumênica e da Pedagogia do Afeto, no meio popular e como disciplina acadêmica. Contudo, no campo intelectual, que o seja sem qualquer tipo de preconceito que reduza, em determinadas ocasiões, a perspectiva de grandes pensadores analíticos, pelo fato de alguns deles se submeterem a certos dogmatismos ideológicos e científicos, o que é inconcebível partindo de mentes, no supino, lucubradoras. Até porque a Ciência é pródiga em conquistas para o bem comum. Mas também, no seio dela e em outras áreas do saber, houve os que muito sofreram incompreensão, por causa do convencionalismo castrador, mesmo de certos pares que apressadamente os prejulgavam. Vítimas deles foram Sócrates, Bias, Baruch Spinoza, Dante Alighieri, Galileu Galilei, Semmelweis, William Harvey, Samuel Hahnemann, Maria Montessori, Luísa Mahin, Dr. Barry J. Marshall, Dr. J. Robin Warren e outros nomes célebres, universalmente acatados.

Em suma, a Caridade, sinônimo de Amor, é uma Ciência especial, a vanguarda de um mundo em que o ser humano será tratado como merece: de forma humana, portanto, civilizada. Estaríamos, assim, erigindo um Império de Boa Vontade neste planeta, o estado excelente para o Capital de Deus — ou seja, o ser humano com seu Espírito Eterno ou, poderíamos dizer, o Espírito Eterno do ser humano, o que verdadeiramente somos em essência —, que circula por todos os cantos e não mais pode aceitar especulação criminosa de si mesmo. (…)

Esta ponderação da educadora e escritora brasileira Cinira Riedel de Figueiredo (1893-1987) vem ao encontro do que anteriormente abordamos: “De cada homem e cada mulher depende o aprimoramento de tudo quanto nasce, cresce, vive e se transforma sobre a Terra, porque, de fato, nada morre. Existe uma contínua transmutação, e devemos ser os guias para que essa transformação se faça uma ascensão constante, tornando-se cada vez mais bela e mais perfeita para representar melhor a vida que a anima”.

Não nos situamos no reino das nuvens

A distorção do pensamento a respeito do abrangente significado da Caridade tem produzido grande prejuízo à sociedade. É preciso, em definitivo, entendermos que, no mais amplo sentido, o Mandamento Sublime da sobrevivência pessoal e coletiva é a Caridade. Ela se expande por todos os estratos da atuação criativa espiritual-humana, nos quais aguarda o convite da Alma para nela manifestar-se.

Philipp Melanchthon (1497-1560), o respeitado teólogo e educador alemão que liderou o luteranismo após a morte de Martinho Lutero (1483-1546), colocou-se do lado dos que preferem servir, ao citar o seguinte aforismo: “Nas coisas necessárias, unidade; nas coisas incertas, liberdade; em todas as coisas, a caridade”.

Ensinava o Apóstolo Paulo, em sua Primeira Carta aos Coríntios, 13:13, que, das três virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade), a maior delas é a Caridade, que, como não nos cansamos de repetir, é sinônimo de Amor. Duvida?! Basta consultar um bom dicionário.

Há, igualmente, os que acreditam ser a Caridade a ação de fracos, fuga dos que não desejam a solução definitiva para os problemas sociais… Só que as propostas que, por tanto tempo, vêm apresentando não resolveram as aflições do mundo. É que tudo deve começar pelo ser humano com o seu Espírito Eterno, o alvo da Caridade, que não é o refúgio de sonhadores ou proposta escapista de gente acomodada. Pelo contrário. Tê-la como decisão de vida, de atividade promotora de transformações profundas na sociedade, a partir do sentimento de cada criatura, exige determinação, caráter e coragem, consoante demonstra o célebre orador da Antiguidade Demóstenes (384-322 a.C.), ao afirmar: “Não podes ter um espírito generoso e valente se tua conduta é mesquinha e covarde; pois quaisquer que sejam as ações de um homem, tal será o seu espírito”.

Caridade — Plano Divino de preservação da Vida

Não haverá Sociedade Solidária, e, possivelmente, com o tempo, o próprio planeta como o conhecemos, se não compreendermos a Caridade como um Plano Divino para que haja sobreviventes à avidez humana.

Por falar em Deus, bem apropriado para o texto esta máxima de Mary Alcott Brandon“Existe uma força superior que dirige o Universo. O nome que dermos a ela é secundário”.

Pobre é quem ignora a perfeita Lei de Fraternidade e de Justiça, aquele que se esquece do Criador e de Suas criaturas. Palavras de Eliú, Livro de , 34:11 e 12: “Deus retribui ao homem segundo as suas obras e faz que a cada um toque segundo o seu caminho. Na verdade, Deus não procede maliciosamente; nem o Todo-Poderoso perverte o juízo”.

Por intermédio da psicografia de Chico Xavier (1910-2002), o famoso médium espírita de Uberaba/MG Cornélio Pires (1884-1958), jornalista, poeta e um dos maiores divulgadores do folclore brasileiro, deixou registrado, no livro Conversa firme, esta sugestiva quadrinha:

“Sociedades e grupos
São destinados ao Bem,
Deus não cria mal nenhum
Nem cativeiro a ninguém”.

Fraternidade é a Lei. Ética, a sua disciplina. Justiça, a sua aplicação. Ninguém mais infeliz do que o indigente da Fé e da Caridade. Quem é verdadeiramente rico? Aquele que ama. Como sábio e afortunado é o que da mesma forma se comporta, promovendo o bem-estar da sociedade. É o caso do filósofo, médico e musicólogo, intérprete de Bach (1685-1750), Albert Schweitzer (1875-1965), que por mais de 50 anos cuidou dos doentes em Lambarene, antiga África Equatorial Francesa. Dizia ele: “Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros. É a única”.

O conhecido missionário, que também foi Prêmio Nobel da Paz de 1952, era tido por Albert Einstein (1879-1955) como “o maior homem vivo” de sua época. Gandhi (1869-1948) já havia sido assassinado.

Por termos confiança no ideal da Boa Vontade, persistiremos até alcançarmos a concretização da Economia da Solidariedade Espiritual e Humana, firmada no Novo Mandamento de Jesus (Evangelho, segundo João, 13:34; e 15:13) — “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. (…) Não há maior Amor do que doar a própria vida pelos seus amigos” —, parte integrante da Estratégia da Sobrevivência, conforme publiquei em 1986, na Folha de S.Paulo.

Elevado espírito social

O avanço tecnológico tem derrubado muitas fronteiras e feito algumas desabar sobre outras. Entre elas, econômicas e sociais. Contudo, a globalização não vai impedir a diversidade. Porquanto, se mundializa, dá também expressão ao regionalismo. De várias formas, todo mundo influencia todo mundo. No entanto, barreiras, em diversas partes do planeta, ainda tornam cada vez mais distantes ricos e pobres. Isso pode resultar em consequências profundas, em amplitude internacional, a exemplo do fim do Império Romano. Entretanto, desta vez, tais transformações poderão provocar providências inusitadas até em corações de pedra, antes contrários ao pragmático espírito de Caridade, que serão levados a pensar que existem algumas coisas vitais, até mesmo para eles, como… a compaixão. (…) Caridade não é pífio sentimentalismo, a que alguns gostariam de reduzi-la. Acertou, pois, quando escreveu o grande Joaquim Nabuco (1849-1910), primeiro embaixador brasileiro nos EUA: “À luta pela vida, que é a Lei da Natureza, a Religião opõe a Caridade, que é a luta pela vida alheia”.

O que seria mais importante para o fortalecimento das comunidades do que esse elevado espírito social?

É possível igualmente esperarmos do alto significado da Caridade, na atitude diária, o completo caminho da verdadeira independência de nossa pátria.

Caridade é assunto sério.

José de Paiva Netto ― Jornalista, radialista e escritor.

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