Márcio Soares Berclaz*
Diz o artigo 260 do Código de Processo Penal que “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Tal norma, situada geograficamente tendo como título “o acusado e seu defensor”, deve ser lida como um dispositivo de matriz autoritária que, à luz das garantias constitucionais vigentes, de modo geral, não tem mais razão de ser e, portanto, no limite da sua estrita previsão legal, pode ser tido como incompatível e incongruente com a Constituição, com mais ou menos força, a depender da interpretação.
O problema de se ter um Código Processual Penal tão “embolorado” como o nosso – de 1941 – é que este precisa ser constantemente conformado e adequado à Constituição de 1988 que lhe foi posterior, a qual assegura diversas garantias ao acusado, dentre as quais o direito ao silêncio e o direito de não produzir prova contra si (artigo 5o, LVII, da Constituição). É por isso que, de modo acertado, ainda que tardiamente, coube ao legislador, desde a Lei 10.792/03, modificar a redação do artigo 187, que originariamente previa a possibilidade absurda e inquisitória do silêncio ser interpretado em prejuízo do acusado. Idêntico ajuste já deveria ter sido feito em relação ao artigo 260 do CPP, afinal, se o réu tem direito ao silêncio e a não produzir prova contra si, pode recusar-se a colaborar com a investigação ou a participar de atos de produção de provas em seu desfavor, cabendo ao Estado buscar outros meios para produção do conhecimento necessário ao esclarecimento dos fatos. Eles existem, ainda que possam exigir maior custo, estrutura ou criatividade.
Ainda que o artigo 260 do CPP, como visto, já não fosse adequado à Constituição na sua versão originária, a distorcida banalização da sua utilização em tempos recentes para postular ordem judicial capaz de obrigar pessoas a comparecerem para serem ouvidas ou interrogadas reforça a necessidade do reconhecimento do seu descabimento ou, na melhor das hipóteses, seu reenquadramento. Primeiro de tudo, não é ético que se obrigue alguém a fazer algo quando a pessoa, seja testemunha, seja, principalmente, investigado, não teve sequer a oportunidade de comparecer espontaneamente para prestar esclarecimentos ou, no último caso, exercer a sua autodefesa.
Em segundo lugar, dependendo das circunstâncias, não parece haver muito sentido em forçar alguém a comparecer fisicamente perante a autoridade quando esta pessoa, na condição de investigada ou de acusada, como visto, tem o direito de permanecer em silêncio e não produzir prova contra si.
Pior que isso, só mesmo a constatação de que, para além do seu problemático vício de origem, a pretexto de um “poder geral de cautela” existente no processo civil e impróprio para o processo penal, permitiu o Poder Judiciário que o artigo 260 do CPP fosse aplicado com bastante frequência, quase como “procedimento padrão”, para além dos limites da sua redação originária, a fim de alcançar não apenas o “acusado” (aquele que tem efetivamente uma denúncia e imputação formal contra si), mas também o investigado, mesmo quando não tivesse havido qualquer “intimação” prévia, tudo com o intuito de levar a pessoa nesta condição, de surpresa, em caráter imediato, à presença da autoridade.
Nessas circunstâncias, forçar uma condução coercitiva de potencial ou efetivo investigado de modo surpreendente não deixa de ser uma tentativa de dificultar o exercício de garantias constitucionais que limitam o poder punitivo do Estado, ainda que isso, consequentemente, possa dificultar ou exigir do Estado o incremento da sua investigação por outros meios que não dependam da confissão ou da disposição do investigado em colaborar. A investigação poderá ser realizada, ainda que de forma mais inteligente, mais técnica (perícias), mais organizada, mais planejada, enfim, por outros meios.
Desse modo, quem é retirado do seu domicílio de surpresa, de modo inesperado, sem saber exatamente a sua condição (se investigado real ou potencial), sem conhecimento de quais provas eventualmente existem contra si, sem poder escolher e dialogar com sua defesa com antecedência necessária, especialmente em um contexto no qual outras pessoas foram presas temporária ou preventivamente, está indiscutivelmente inserido num ambiente de fragilidade e de vulnerabilidade de suas garantias constitucionais, o que inevitavelmente gera pressão e coação que, nesse contexto, pode induzir ou apressar uma manifestação contrária ao próprio interesse.
Ainda que a compreensão do processo penal na “teoria dos jogos” possa indicar a probabilidade de haver maior e melhor resultado na busca de conhecimento quando as pessoas são apanhadas de surpresa e de modo inesperado no seu domicílio para serem ouvidas, esse “atalho” mostra-se particularmente incompatível com as garantias de silêncio, não autoincriminação e direito à ampla defesa que se coloque como alvo de condução coercitiva qualquer investigado ou alguém que possa vir a estar futuramente nessa condição. Repita-se, em um processo penal democrático, os fins nunca podem justificar os meios.
Assim, acertou o STF na decisão da última semana, ao apreciar as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 395 e 444, ainda que o tenha feito de modo limitado e restrito à situação do investigado/acusado. Ser guardião da Constituição é saber reconhecer, ainda que tardiamente, a não recepção ou a interpretação conforme de normas elaboradas antes do advento da Constituição e que com esta se mostrem incompatíveis.
Se a decisão recente do STF acarretará, pragmaticamente, o provável aumento das prisões temporárias, isso somente está a indicar e confirmar o que já se sabe: que essas, em muitos dos casos, mostram-se desnecessárias e abusivas. Em isso ocorrendo, como se imagina, somente restará confirmado que a condução coercitiva, de fato, muitas vezes, foi sim utilizada como instrumento de pressão e constrangimento para driblar, dificultar, embaraçar ou mesmo criar maior resistência para o exercício de garantias constitucionais do investigado.
Diferente é a situação em que se mostra viável, ainda que sempre de modo excepcional, a prisão do investigado quando “imprescindível” para as investigações ou para evitar a destruição de provas, o que somente pode ser feito sob a estrita fundamentação do cumprimento de requisitos legais estipulados, quando comprovadamente restar demonstrado que a manutenção do investigado em liberdade prejudica de modo concreto o desenvolvimento da investigação. Isso continua sendo possível e segue inalterado.
Aliás, a propósito do Anteprojeto de Novo Código de Processo Penal, este sequer prevê dispositivo similar para dispor sobre condução coercitiva.
*Márcio Soares Berclaz, doutor em Direito pela UFPR. Professor de Processo Penal no curso de Direito da Universidade Positivo (UP).