Recordo-me da primeira mรฃo levantada na minha aula. Isso foi hรก trinta anos. Eu falava sobre o Egito e nรฃo sabia mais que um punhado de informaรงรตes decoradas. Um aluno no fundo da sala levantou a mรฃo no momento em que eu descrevia as fases da evoluรงรฃo polรญtica do Egito Antigo: Antigo Impรฉrio, Mรฉdio Impรฉrio, Novo Impรฉrio, Renascimento Saรญta….pois nรฃo? Meu coraรงรฃo se acelerou. E se ele me perguntasse sobre algum faraรณ desse perรญodo saรญta que eu sequer sabia por que se chamava assim? (Hoje sei que se relaciona ร capital estabelecida em Saรญs, neste perรญodo, como antes havia sido em Tebas, por exemplo). Olhei fixamente para ele e repeti: pois nรฃo? E ele disparou: Professor, o que o senhor sabe sobre os satรฉlites?
Foi um susto e, ao mesmo tempo, um alรญvio. Saรญs, satรฉlite, algum mecanismo de associaรงรฃo disparou na mente do meu aluno distraรญdo e, tomado pela sรบbita dรบvida, perguntou-me. Nรฃo me recordo o que respondi, mas, por muitos anos, esquecido de mim e da minha fragilidade, usei esta histรณria como um exemplo da falta de preparo dos estudantes. Nรฃo percebia que meus esquemas de โAntigo Impรฉrio, Mรฉdio Impรฉrio, etc.โ nรฃo faziam o menor sentido para aqueles jovens e adultos de Supletivo que, cansados de seus trabalhos, iam para a aula em busca de um diploma exigido para seus sonhos da ascensรฃo social.
Mas, de repente, em meio ao meu diรกlogo para surdos, com meus esquemas mal decorados, uma palavra ecoou diferente aos ouvidos deste jovem aluno e despertou uma velha (ou nova) curiosidade sobre satรฉlites, este objeto mรกgico โ na verdade um artefato humano altamente sofisticado, fruto de geraรงรตes de esforรงos e pensamentos โ que transmite ondas de TV de um lado a outro do mundo quase instantaneamente, permitindo-nos assistir a coisas da China ou da Alemanha, ao vivo!
Onde ele teria ouvido falar de satรฉlites? Na televisรฃo? Em alguma conversa de trabalho? Teria, ao ouvir falar, feito que cara? De entendido? Ou jรก teria assumido antes esta dรบvida, expondo-se corajosamente? E o que eu โ que atรฉ hoje nรฃo sei como os satรฉlites funcionam, nem sei se รฉ correto chamar โondasโ de televisรฃo e muito menos e como se dรก a โmรกgica da transmissรฃo ao vivo โ devo ter respondido? Provavelmente devo ter alertado ao jovem aluno que a pergunta dele nรฃo guardava nenhuma relaรงรฃo com o conteรบdo da aula e que, portanto, nรฃo era pertinente, desmerecendo qualquer resposta. ร, devo ter cometido um crime destes.
Hoje reflito sobre essas memรณrias jรก desgastadas e percebo como essa minha profissรฃo precisa ser repensada. O que faz de um professor um professor? Por que e em que medida ele pode ser รบtil? Um professor de jovens como eu sou ainda hoje, o que sabe da juventude que o ouve? Que escolhas deve fazer para exercer sua profissรฃo frente a estes jovens do sรฉculo XXI?
Sempre fui um decidido fรฃ da cultura ocidental e dos arquรฉtipos ย que o Ocidente desenvolveu ao longo dos sรฉculos, forjando conceitos de primeira ordem, de carรกter estruturante dos nossos discursos mais solenes: โdemocraciaโ; โfamรญliaโ; โtrabalhoโ; โfuturoโ. Sempre acreditei que esses conceitos precisavam ser perpetuados e os โproblemasโ atuais estรฃo relacionados ร nossa incapacidade de fazer valer uma escola que nรฃo ensina esses conceitos bรกsicos de nosso projeto civilizacional.
Nรฃo sei como acreditei tanto tempo nisso. Sei que, felizmente, fui ficando velho e mais perspicaz. A escola รฉ uma lugar de vivรชncia e nรฃo de ensino desses conceitos. Encerrar dezenas de jovens em carteiras enfileiradas, exigir silรชncio e ameaรงar puniรงรตes e lembrar provas com poderes de aprovar ou nรฃo e depois escrever โdemocraciaโ no quadro รฉ quase uma piada de mau gosto. Mas รฉ assim que fazemos, muitos, durante dรฉcadas.
A escola รฉ espaรงo pรบblico de construรงรฃo de valores estruturantes para o mundo dos jovens e nรฃo mais para o nosso mundo que, felizmente, morrerรก conosco. Nรฃo temos uma funรงรฃo, no sentido de cumprir um requisito para um fim. Temos um papel, de acompanhar, estimular, encorajar a construรงรฃo desses estatutos para esse mundo do qual nos despediremos com lรกgrimas de felicidade ou de decepรงรฃo.
Tudo o que chamamos de โalienaรงรฃoโ, โdespreparoโ, โfalta de interesseโ dos jovens รฉ mais um estรญmulo que uma crรญtica. Para construรญrem esse mundo novo, devem se alienar do nosso. Se se apegarem sรณ ao que estรก aรญ, nรฃo construirรฃo um mundo novo, mas um remendo do velho. ร fato que devem beber da fonte que forja tudo, o passado, mas eles serรฃo os ferreiros, nรฃo nรณs.
O despreparo รฉ a condiรงรฃo da juventude. Lembram da nossa? Ou somos uma geraรงรฃo que jรก sabia tudo na juventude? E รฉramos igualmente educados, comportados, aplicados, formais e silenciosos como queremos que eles sejam? ร fato que podemos falar em escalas, mas nรฃo falamos disso. Dizemos: โA que ponto chegou! Assim nรฃo dรก. Essa geraรงรฃo nรฃo tem limites!โ Mas qual รฉ o ponto tolerรกvel? Qual limite รฉ aceitรกvel? E mesmo esse ponto tolerรกvel, esse limite aceitรกvel, admitimos como um sinal de compreensรฃo e abertura para o diรกlogo?
A falta de interesse, que รฉ o desejo de estar junto, รฉ reflexo dessa nossa mania de exercer funรงรฃo voltada aos fins e acreditarmos que os fins que os jovens devam almejar รฉ o que nรณs determinamos e nรฃo o que eles vรฃo escolher. O mundo serรก deles e nรฃo nosso. E nรฃo hรก muito do que se orgulhar do que estamos deixando para dizer a eles que devem โcuidar bemโ da nossa heranรงa. Se ficarmos apenas nos quesitos โarโ, โรกrvoreโ e โรกguaโ, devemos, isto sim, muito mais desculpas do que exigรชncias.
Sempre associei minha profissรฃo a um โsacrifรญcioโ. Horas e horas em sala, fora as leituras, as provas, as atividades burocrรกticas. E as reuniรตes pedagรณgicas! Nunca conheci um professor que me dissesse: โUau, que bacana a programaรงรฃo dessa semana pedagรณgica! Vamos aprender bastante, nรฃo?โ.
Faรงo parte de uma classe de profissionais que se sente sacrificada. A recompensa โ o que รฉ, ao mesmo tempo, incrรญvel e paradoxal โ vem do carinho dos alunos, do sucesso deles, da lembranรงa da nossa existรชncia na vida deles. Deles, dos mesmos jovens que criticamos e acusamos de โdespreparados para o futuroโ. Como se houvesse uma fรณrmula para o futuro. E pior: como se soubรฉssemos que fรณrmula รฉ essa!
Lamento, 30 anos depois, da resposta que nรฃo lembro ter dado ao jovem do supletivo que queria saber sobre satรฉlites. โEu nรฃo sei responder isso a vocรช, meu jovemโ. Mas eu deveria ter estimulado sua busca e ajudado a buscar, indicando alguma referรชncia. Meu papel รฉ ajudar na construรงรฃo das pontes. Minha funรงรฃo nรฃo รฉ a de levantar barreiras. A escola deve ser um lugar de acolhimento. As provaรงรตes, a vida jรก garante de sobra. Nosso papel รฉ o de compreender que interesse รฉ construรงรฃo รกrdua e paciente e que nรฃo se impรตe; compreender que autoridade รฉ o que se reconhece em outro e nรฃo o que se estabelece a priori; ย compreender que preparo รฉ uma palavra que morreremos tentando. E que futuro, ora, o futuro รฉ a promessa que fazemos de estarmos juntos em parte do caminho. Por isso educar รฉ um compromisso, uma promessa que se faz juntos. E o futuro passa a existir quando decidimos juntos essa partilha do tempo e do esforรงo por construir pontes e traduรงรตes de um mundo cujo sentido nรณs damos.
Esse รฉ o papel da minha profissรฃo. Professor. Com muita satisfaรงรฃo.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo pela UFPR. Professor de Histรณria e Filosofia. Atualmente, รฉ professor no Curso Positivo.