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Um menino, uma menina.

Durante a guerra do Vietnã um general americano declarou: “os vietcongs não sentem dor como nós”. A História registra que os vietcongs e os norte vietnamitas suportaram estoicamente a destruição de suas colheitas e florestas por napalm, as chuvas de bombas em quantidade equivalente à de toda a segunda guerra mundial, os massacres criminosos como o de My Lai, até derrotarem a maior potência militar do planeta. E sim, sentiam dor como nós, exatamente como nós. 

A gênese comum aos estupradores, pedófilos, torturadores, maltratadores de animais, inclui crença parecida, “não sentem dor como nós”, colocando vítimas e algozes em diferentes segmentos de sensibilidade.

As vítimas têm, todas, algum tipo de fragilidade que impede ou dificulta a defesa, e na mente do abusador isenta-o do que o intimida e humilha. Estar armado perante alguém que não está, ser adulto frente a uma criança, ser “homem” junto a uma mulher, ter a seu favor o poder da autoridade, ser pai ou irmão ou padrasto de alguém que o respeita, ser “proprietário” de cachorro ou gato. E, na ilusão de quem comete o crime, as vítimas não sentem dor, no sentido de que não sabem o que está acontecendo ou não podem impedir que aconteça, mas sentem dor sim, dor que pode durar toda uma vida, que pode acabar com uma ou mais vidas. E engana-se quem pensa que os perpetradores de abusos não querem causar dor, a maioria miseravelmente quer sim.

O país recebeu chocado a notícia de que um pré-adolescente de doze anos matou uma menina de nove. Os fatos ainda não estão completamente esclarecidos, o que se sabe é que a vítima era autista e o rapaz tinha um histórico de violências, bem menores do que a que acabou cometendo. 

Imagina-se a dor, a revolta, a frustração dos familiares e amigos da garota, e é grande a tentação de pedir castigo proporcional ao crime. Porém, vingança não é justiça, por menos que gostemos disso em uma sociedade que ser quer civilizada os crimes devem ser apurados isentamente e, se possível, os criminosos devem ter oportunidade de recuperação juntamente com a pena que lhes for imposta. No caso que contemplamos a situação é mais complicada por se tratar de um menor, protegido por Estatuto, e provavelmente portador de distúrbio grave de personalidade. 

A Justiça deverá tratar dessa situação com extremo cuidado, lembrando as frequentes declarações de bandidos que jactam-se “já matei três (ou quatro ou cinco)”; fórmula destinada a aumentar o medo de sequestrados, assaltados, agredidos, pois é dita por alguém que já ultrapassou o limite da humanidade, e não hesitará em matar novamente. O adolescente posto em contato com outros apenados pode procurar o respeito deles narrando seu crime como algo heroico, talvez produzindo-se um efeito “bola de neve” em que a narrativa monstruosa gere outros atos monstruosos.

A criança assassinada era autista e, numa interpretação generalizada, não tinha condições mentais ditas normais, o que a poria na posição de vítima preferencial por que descartável. O autismo não é uma forma de deficiência intelectual, é uma dificuldade extrema de relacionamento, de empatia, e pode ocorrer até em pessoas próximas da genialidade. Era uma criança de nove anos que não deixava a maior parte das pessoas se aproximarem dela, era amada por sua mãe e por vizinhos conforme os relatos que lemos, e teve a infelicidade de permitir a aproximação do adolescente, sedutor como normalmente o são os propensos aos atos desviantes. 

Todo aquele que convive profissionalmente com crianças e jovens recebe a notícia com mais apreensão que pessoas cujo exercício diário não os envolve. É na escola, principalmente quando esta é próxima aos familiares, que mais facilmente distúrbios podem ser detectados, porém não em salas cheias, com professores esgotados e más condições de trabalho. 

A menina sentia dor como todos nós, certamente o menino precisava muito de ajuda em sua condição fora da normalidade, e nós todos sentimos dor por eles. 

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.  

wcmc@mps.com.br

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