Ligia Ziggiotti de Oliveira, Rafael dos Santos Kirchhoff e Ananda Hadah Rodrigues Puchta
“Praticamente todas as semanas surge algum problema que deixa os Estados Unidos preocupados”. A frase com que Dennis Prager abre texto republicado pela Gazeta do Povo em 15 de agosto de 2019 poderia valer como comparativo às experiências brasileiras contemporâneas. Não é excessivo afirmar que em todas as horas de um único dia surge algum problema que deixa o Brasil preocupado. A questão central é: com que problema tem se preocupado cada um de nós?
O autor norte-americano se preocupa com a suposta influência perigosa dos grupos LGBTI nas vivências infanto-juvenis. E entre alguns brasileiros a circunstância não é distinta. É sabido o potencial de mobilização de discursos sobre doutrinação escolar e sobre “ideologia de gênero” nas salas de aula, que promovem comoção arrebatadora entre os cada vez menos disfarçados inimigos da educação.
Dados como os colhidos em 2018 pelo IBOPE apontam que metade do corpo docente de educação básica de todo o Brasil não recomenda a profissão para a juventude. Desvalorização da carreira, péssima remuneração, rotina desgastante e falta de infraestrutura escolar são sintomas conhecidos por toda a população, mas que não sensibilizam os que estão distantes da lógica educacional cotidiana. Em tempos de descredenciamento de estatísticas como esta por parte de representantes importantes do Poder Público, a verdade segue irresponsavelmente relativizada.
Embora o texto defenda a verdade como um valor moral, abordagens deste tipo revelam que o que se busca em situações tais é todo o contrário: distorcer fatos para demonizar uma população que já é historicamente vulnerabilizada, a fim de alimentar fobias sociais que sustentem o desejo de segregá-la ou eliminá-la. Defende-se, de fato, a manutenção de uma teia de privilégios ao mesmo tempo que se invisibiliza a violência e o sofrimento diário de pessoas LGBTI.
São, infelizmente, reações comuns sempre que sujeitos tidos como indesejados ocupam lugares de algum destaque, ainda que em situações excepcionalíssimas, como a vitória de mulheres trans no esporte ou uma drag queen contadora de histórias numa escola infantil. É uma forma de lembrá-los a permissão social para que pessoas LGBTI transitem apenas em determinados espaços e posições e que ultrapassar essas fronteiras – do gueto, da noite, do ridículo, da hipersexualização – é perigoso e deve ser desencorajado.
Prager mira, estrategicamente, a militância, como ocorre por aqui, porque vê nela um dos grandes propulsores dos poucos progressos que vimos acontecer nos EUA e no Brasil. Vocifera contra os grupos LGBTI organizados e acusa-os de instrumentalizar os sujeitos da causa para destruir o mundo tal qual o conhecemos, como se na luta pelo gozo de iguais direitos a eliminação do outro ou do seu modo de vida fosse um alvo. A formulação é reveladora do temor de que uma possível reparação histórica passaria pela inversão dos papéis entre algozes e oprimidos. Não é mera coincidência que por aqui a expressão “ditadura gay” tenha surgido em bocas que enaltecem o período ditatorial iniciado em 1964. Como diria Mia Couto, “em tempos de terror, escolhemos monstros para nos proteger.”
A distorção da realidade e a narrativa apocalíptica do autor, numa típica abordagem propagandista que seu texto pretensamente condenaria, encontra na instabilidade social pela qual passa o mundo, e especialmente o Brasil, um terreno fértil para fazer surgir as figuras dos inimigos do povo, a quem se pode responsabilizar por todas as insatisfações e a quem se deve combater para que a vida melhore. Assim, a população LGBTI e negra, feminista e indígena, são no Brasil atual os grandes vilões que subvertem a ordem moral e impedem o progresso.
A acusação de que os movimentos LGBTI querem destruir a ingenuidade infantil – ou a ideia de erotização da infância, como se popularizou em nosso país – tem enorme potencial mobilizador e é repetidamente assumida por ultraconservadores para impedir qualquer avanço em políticas educacionais voltadas a população não cis-heterossexual. Quando se debatiam no Brasil os planos de educação, entre 2014 e 2015, circularam ostensivamente falsas cartilhas com conteúdo como lições sobre masturbação e uso de drogas, na tentativa de colar nos movimentos LGBTI o estigma de produtores de degeneração. Dizia-se que ensinavam os estudantes a transitarem entre identidades de gênero e a trocarem de orientação sexual como quem troca de roupas, em ignorância risível ao refinamento dos estudos filosóficos, antropológicos e sociológicos sobre a temática.
A estratégia foi tão eficaz que, além de impedir que as legislações aprovadas contemplassem metas sobre a redução das desigualdades pautadas no gênero e na orientação sexual de estudantes, fez ressurgir com grande força no cenário nacional o Programa Escola sem Partido, fundado na defesa de uma pretensa neutralidade política e ideológica e passou a assumir o combate da “ideologia de gênero”. O tema impulsionou inúmeras candidaturas de políticos historicamente distanciados de pautas educacionais sérias que conseguiram se eleger a cargos locais e nacionais.
Contudo, efetivar a inclusão de toda a sociedade à cidadania por espaços escolares, por meio de diálogo construtivo e propagador de respeito, é uma proposta que não poderia ser mais democrática. Situar a expectativa pedagógica para este fim unicamente no poder dos pais é ignorar que abusos sexuais a crianças e adolescentes, expulsão de jovens lésbicas, gays e trans de seus lares, violência física à infância e adolescência ocorrem, majoritariamente, em ambientes domésticos.
Não por acaso, o ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, que criminaliza a chamada LGBTI-fobia, deixa claro que “determinados grupos políticos e sociais, inclusive confessionais, motivados por profundo preconceito, vêm estimulando o desprezo, promovendo o repúdio e disseminando o ódio contra a comunidade LGBT, recusando-se a admitir, até mesmo, as noções de gênero e de orientação sexual como aspectos inerentes à condição humana, buscando embaraçar, quando não impedir, o debate público em torno da transsexualidade e da homossexualidade, por meio da arbitrária desqualificação dos estudos e da inconcebível negação da consciência de gênero, reduzindo-os à condição subalterna de mera teoria social (a denominada ‘ideologia de gênero’)”. A disputa pela opinião pública e a defesa de padrões nocivos de feminilidade e masculinidade escondem a realidade de violência e vulnerabilidade a que estão sujeitas as pessoas LGBTI.
Ao apontar a família como contraponto invariável ao autoritarismo estatal, o artigo norte-americano idealiza aquele espaço. A opressão, contudo, pode muito bem ser exercida a quatro paredes. A civilização como a conhecemos, em reprodução aos termos do original, que tanto admira o modelo vigente, responsabiliza-se por rankings recordistas de feminicídio, de homofobia e de transfobia, transpassados por uma interseccionalidade de vulnerabilidades que é ainda mais violenta com pessoas negras e periféricas. É profundamente machista e pretende aniquilar vivências diversas. Não ampara os verdadeiros problemas da educação e, em verdade, esforça-se para agravá-los. Não é sensível a crianças e adolescentes, e se articula para defender a possibilidade de trabalho infantil, a redução da maioridade penal, a legalização de castigos físicos pelos pais a seus filhos.
Diante desse universo de injustiças, em um único ponto, Dennis Prager não erra. Logo no título de seu artigo, ele acusa os grupos LGBTI de quererem destruir normas. Não causa espanto que quem se beneficia de normas machistas, homofóbicas e transfóbicas regentes da realidade queira mantê-las. Mas também não espanta que quem sofre os seus efeitos mais nefastos queira transformá-las. E neste sentido é que seguiremos.
*Rafael dos Santos Kirchhoff, advogado, é presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI.
*Ananda Hadah Rodrigues Puchta, advogada. Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero – OAB/PR. Co-fundadora do Coletivo Cássia. Voluntária do Grupo Dignidade.
*Ligia Ziggiotti de Oliveira, advogada, doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal do Paraná. É professora da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.