Daniel Medeiros*
Há algum tempo, o termo “doutrinação” passou a ser empregado como uma disposição capaz de permitir o poder público a intervir na prática docente. Um professor ou professora não poderia, de acordo com essa abordagem, expressar ideias políticas, ideológicas, morais ou religiosas que contrariassem os interesses dos pais e fossem capazes de induzir as crianças e os jovens a comportamentos e atitudes reprováveis. Sugeriu-se, inclusive, que cartazes fossem fixados nas portas das salas de aula com essas proibições e os alunos e alunas foram estimulados a denunciar os professores que transgredissem esses novos cânones do ensino.
O parágrafo acima poderia ilustrar o roteiro de algum filme distópico, como 1984. Mas não. Ele existe e agora o Supremo Tribunal Federal vai finalmente se posicionar a respeito da constitucionalidade dessa proposição que já foi objeto de projetos de leis municipais e estaduais por todo o Brasil. No Congresso Nacional também tramita um projeto semelhante, mas ainda não foi votado.
A Constituição brasileira de 1988 é clara quando identifica como um direito fundamental a liberdade de pensamento e de expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Isso já deveria bastar. Mas há ainda outra questão subjacente que merece uma rápida reflexão: os defensores da chamada “escola sem partido” defendem um ensino fundamentado na “neutralidade” ideológica e no respeito às escolhas da família. Ora, o próprio conceito de família não é neutro. Igualmente o de escolha. Para não irmos longe: onde reside a neutralidade? Na História, há uma narrativa absoluta? Na Filosofia, um autor supremo? Na Geografia, um modelo único de propriedade, de desenvolvimento urbano, de disposição espacial? Na Sociologia, uma só forma de organização da sociedade?
Por isso, em um Estado Democrático de Direito não se pode falar em doutrinação quando há manifestação das diversas formas de ver e compreender o mundo; quando se apresenta as diversas correntes de pensamento e as diversas tensões entre os defensores de cada uma delas; não há doutrinação quando se detalha os diversos aspectos de um modelo político, ou um sistema de ideias; não se doutrina quando se explica como as diversas instituições surgiram e como elas se modificam ao longo do tempo. Não se doutrina quando lembramos aos jovens que não há um certo e um errado moral absoluto, mas que as atitudes devem se conformar aos contextos e os contextos são espaciais e temporais, portanto, dinâmicos. E que ao mesmo tempo que há os defensores de valores universais, há os que sustentam a importância dos costumes e culturas locais. E essas tensões são válidas e respeitadas em um ambiente democrático.
Lógico que a variedade incomoda aos que têm certeza (e não esqueçamos: o contrário da verdade não é a mentira, mas a certeza). A mudança é quase sempre vista como decadência e a multiplicidade como degradação. Daí o desejo de controle e de censura. Essa tendência se torna ainda mais complicada quando se soma a uma visão nostálgica de um passado inexistente, no qual os valores eram respeitados e as verdades cristalinas. Daí vem o desejo de evitar que os jovens se encontrem com as possibilidades de escolhas que só a diversidade permite. E essa possibilidade de escolha é o cerne desse debate que caberá agora à Corte suprema decidir. Doutrinar é tolher a possibilidade de escolher, apontando um caminho único para trilhar.
Ficará fácil perceber quem quer doutrinar. Uma escola democrática é partilhada, é múltipla, é a celebração das diferenças e dos projetos democraticamente assumidos em comum, pelo debate e pelo consenso. Um escola sem partido não tem nada disso, mas sim uma visão monocromática em nome de uma certeza moralmente assumida. Por isso, a escola sem partido simpatiza com as escolas disciplinadoras, como a última invenção, as chamadas escolas cívico militares. Lugar para obedecer não é um lugar de aprendizado. Exceto aquilo que se quer que se aprenda. Ou seja: o projeto Escola sem Partido é um projeto de doutrinação de jovens. Exatamente o que ele afirma negar, em um loop infinito.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.