Minha mãe

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Daniel Medeiros*
danielmedeiros.articulista@gmail.com

 Minha mãe eu conheço desde quando ela tinha 6 anos e ficou órfã de pai e minha vó era muito pobre para sustentar todos os filhos. Minha mãe deixou a escola aos 9 anos para que minha tia pudesse começar a estudar porque não havia dinheiro para comprar uniforme para as duas. Minha mãe começou a trabalhar aos 12 anos, ajudando em um salão de cabeleireiro. Minha mãe comprou o primeiro sapato com quinze anos.

Ouço essas histórias sobre minha mãe e sonho triste com o olhar triste dela, com o choro triste dela. No recreio, minha mãe colava o rosto no portão e olhava para a rua para não ver os outros alunos lanchando porque minha mãe não tinha o que comer. Minha mãe que certa vez ganhou uns trocados no jogo do bicho e comprou uma roda de salsicha. Minha mãe que perguntava para as pessoas nas ruas onde encontrar trabalho e um dia a mandaram para uma fábrica onde estavam contratando jovens para enxugar gelo e ela foi toda esperançosa  de poder dar uma boa notícia em casa. Minha mãe que teve um quisto na gengiva e, como não tinha dinheiro para se tratar, o dentista arrancou todos os dentes da sua arcada superior. E minha mãe ficou anos sem sorrir com vergonha por não ter dentes.

Minha mãe que nunca conheceu o ócio e nunca conheceu a Ciência. Minha mãe que entrou pela primeira vez em uma universidade pública quando eu, filho dela, fui defender minha dissertação de mestrado e pude homenageá-la. Minha mãe deixou suas lágrimas no piso do salão nobre da Universidade, ela que sempre quis estudar mas parou porque não tinha dinheiro para comprar uniforme. Minha mãe que já teve todas as doenças e que não morreu porque precisava deixar seu testemunho sobre as injustiças gratuitas do mundo. Minha mãe que era paciente para me ensinar sobre coisas que ela mesma não sabia, mas, com o livro na mão, tomava-me os pontos dos conhecimentos que lhe foram negados na infância. Minha mãe que era dura com a minha preguiça porque a preguiça era um fantasma sedutor que a assombrava desde sempre, sem que ela pudesse afastar de perto dela. Minha mãe que trabalhou a vida toda e ainda hoje, aos 80 anos, sonha em viajar, em conhecer o mundo, sonho da menina que arrastava o chinelinho pelas ruas enlameadas da Paranaguá dos anos 40, magrinha com olhar guloso sobre tudo que era tão pouco, tão minguado.

Ninguém no mundo é, para mim, um exemplo maior do que a minha mãe. Nem Mandela, nem Gandhi, nem Teresa de Calcutá, nem Buda, nem Jesus crucificado. Porque o olhar de minha mãe eu conheço, toco seus dedos enrugados que ainda trabalham, beijo sua cabeça de cabelos finos e ralos, ouço sua risada engasgada por falta de prática. Minha mãe é uma sobrevivente do campo de concentração da injustiça social e da falta de escrúpulos do mundo que faz do mérito uma piada de mau gosto. Minha mãe é uma sobrevivente de uma política de extermínio de sonhos e desejos, de possibilidades erráticas e fugazes, de promessas de um futuro na fábrica de enxugar gelo.

Mas minha mãe sobreviveu e me ensinou para ser uma voz, acreditou na minha voz, ensaiou comigo a minha voz, abriu a janela para mim, mostrou o horizonte que ela mesma não enxergava, mas que sabia que ficava para aquele lado. Minha mãe é uma mulher comum. Muitas mães foram, são e serão como ela. Elas, essas mães, são a esperança de que o jardim dos homens não desertifique. Com suas mãos enrugadas e olhos baços, o corpo como território de dores impossíveis, minha mãe é o meu futuro. Quando eu crescer, peço muito para ser como ela.

 

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica pela UFPR, consultor, palestrante e professor de História e Filosofia no Curso Positivo.

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