O policial militar paranaense Guilherme Skrepka Ovçar, 29 anos, é um deles. Entre janeiro de 2019 e janeiro de 2020 ele trabalhou em Darfur, no Sudão, onde integrou a UNAMID (United Nations – African Union Hybrid Operation ou Missão Híbrida das Nações Unidas e da União Africana). A primeira experiência em uma operação de paz da ONU transformou o estudante de Relações Internacionais do UniCuritiba – instituição de ensino superior que faz parte da Ânima Educação, uma das maiores organizações educacionais do País.
Ainda que a nobreza da missão – focada principalmente em reestruturar uma região em guerra e solidificar acordos de paz – não possa ser ignorada, a grande lição trazida por Guilherme vai muito além do trabalho realizado no dia a dia. O choque cultural e a crueza que a vida impôs aos moradores de Darfur, na fronteira com o Chade, ainda hoje emocionam o policial.
“O Sudão é um dos berços do radicalismo islâmico e de várias organizações terroristas. Há décadas o país enfrenta conflitos entre tribos e religiões e sua história é marcada por guerras civis. No final da década de 1980, houve um golpe de estado, seguido nos anos 1990 por dois novos conflitos por maior participação política, que agravaram a situação”, contextualiza o estudante de RI.
As crises a que Guilherme se refere são a Guerra Norte e Sul (entre o Sudão e o Sudão do Sul) e o Conflito de Darfur. Como forma de repressão a este último episódio, o então presidente sudanês Omar al-Bashir iniciou uma política de genocídio contra as populações negras não árabes, basicamente tribais, e às tribos árabes que não se curvam ao controle da capital, levando a uma onda de migração interna.
“Foi em 2004 que a ONU iniciou uma intervenção, com uma missão de paz a partir de 2008. Mesmo respeitando a cultura local e a diversidade, enfrentamos muita resistência e instabilidade”, conta. Em 2019, outro golpe de estado no Sudão retirou Omar al-Bashir do poder.
Oficial da Polícia Militar do Paraná, Guilherme é um dos poucos policiais brasileiros da área de Relações Internacionais a participar de uma missão da ONU. “Eu fiz todo o processo seletivo como policial militar, mas já estava concluindo a graduação quando viajei (ele interrompeu a produção do TCC para ingressar na operação) e esse foi um grande diferencial enquanto estive lá.”
Isso porque todo o conhecimento adquirido no curso foi importante para o relacionamento com outros colegas da missão e também com a comunidade local. Diariamente, Guilherme convivia com pessoas de sete ou dez nacionalidades e, eventualmente, se relacionava com representantes de trinta ou mais países. Entender sobre a história das nações, geopolítica e as particularidades de cada região ajudou na convivência e foi decisivo para conquistar a simpatia e o respeito dos nativos.
“O mundo sabe muito pouco sobre o Brasil e isso me deixava chateado. Para não cometer o mesmo erro, eu quis mostrar que entendia quem eles eram e em qual contexto estavam inseridos. Uma missão de paz deveria ser um estágio para todo estudante internacionalista”, sugere.
A coordenadora do curso de Relações Internacionais do UniCuritiba, Patrícia Tendolini Oliveira, diz que é muito gratificante ver um estudante como Guilherme tendo essa experiência e, principalmente, saber que ele estuda e verdadeiramente faz relações internacionais.
“Com essa incrível oportunidade de participar de uma missão de paz da ONU ele vivenciou muito do que viu em sala de aula e trouxe para nós essa experiência prática tão sensacional! Além disso, nós que fomos professores dele, vimos uma incrível evolução deste super profissional, com uma bagagem teórica incrível, mas também com uma vivência prática extraordinária”, avalia.
CHOQUE CULTURAL
“Missão de paz não é turismo e é totalmente diferente daquilo que entendemos como trabalhar fora do país.” É assim que o estudante do UniCuritiba, Guilherme Ovçar, resume o ano que passou no Sudão a serviço. Mesmo ele, que tem outras viagens ao exterior no passaporte, se surpreendeu. “É uma oportunidade para grandes aprendizados, mas também um período de muito desgaste físico e emocional. Prova é que a ONU estabelece como prazo máximo o tempo de dois anos.”
As gafes – como chegar de bermuda em um país que faz 42 graus no inverno, mas onde apenas crianças podem se vestir assim – fazem parte do repertório de lembranças, mas nem de longe representam os piores momentos. “Tomei muito cuidado e ainda assim não evitei as gafes culturais. Lá não é a Europa, lá não tem turismo, lá eles não querem ocidentais e, definitivamente, você não está a passeio”, comenta.
Morando em um contêiner na base militar da ONU, Guilherme experimentou a rotina sem água potável (o tratamento era feito quimicamente) e com energia elétrica por apenas quatro horas diárias. As refeições não tinham carne, apenas frango pouco saboroso e muito arroz apimentado. Durante a semana, nada de internet. Acesso a sites de notícias mundiais apenas por 15 minutos, na base da ONU, durante o envio dos relatórios de trabalho.
No Sudão, pesquisas a sites e serviços online são rigorosamente controlados. Redes sociais são proibidas. E as dificuldades se acumulavam, como ver as chuvas transformarem o deserto em um lamaçal que impediu a chegada de caminhões com combustível. O resultado? Geradores parados e três semanas sem energia elétrica. “Sentimos na pele o que é viver como uma tribo sudanesa.”
PLANOS DESDE A ADOLESCÊNCIA
Guilherme ainda não era policial militar nem estudante de Relações Internacionais, mas já sabia: um dia, iria participar de uma missão da ONU. O sonho de adolescente se concretizou. Primeiro, o cadete da PM do Paraná começou a carreira, depois a faculdade para, então, em 2017, se inscrever no concorrido processo seletivo da Organização das Nações Unidas.
Sempre que há vagas, o departamento da ONU em Nova Iorque informa ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil. Cabe ao Exército administrar a seleção dos policiais militares que vão participar das missões de paz. Depois de provas de habilidade técnica, intelectual, de idiomas e outros testes que seguem os padrões mundiais da ONU, Guilherme comprovou sua aptidão. Das três oportunidades de destino (Sudão, Congo e Haiti), foi para o Sudão que ele embarcou.
No continente africano, o estudante do UniCuritiba passou por duas semanas de treinamento e ambientação e, depois, durante meses, atuou em patrulhas e trabalhos de observação. Em suas atividades, o peacekeeper (como são conhecidos os participantes das missões de paz da ONU) seguia em missões com outras quatro ou cinco pessoas, em viatura blindada escoltada por tropa militar (em seu caso, um batalhão do Exército do Paquistão).
“A região é extremamente precária, no meio do deserto, sem serviços de energia elétrica, água potável. Não se podia falar com as pessoas, só com o líder das tribos. As mulheres não podem ser olhadas. Tínhamos que monitorar a distribuição de água, de remédios, as condições de hospitais e delegacias, fazer visitas a milícias, monitorar desarmamentos, checar denúncias de trabalho infantil, estupros…”, explica.
Dentro da missão, há um processo de seleção de vagas e mudanças de funções. Com o tempo, Guilherme assumiu outras atribuições. Saiu do nível operacional na linha de frente para o nível tático, em atividades administrativas.
CARREIRA E FUTURO
De volta ao Brasil, ele vai terminar o curso de Relações Internacionais no UniCuritiba. Ao currículo, sabe o quanto a viagem tem a acrescentar. “São poucos os policiais militares que têm a experiência como peacekeeper e que, aliado a isso, sejam formados em RI. Para a polícia militar do Paraná trago um nertworking muito interessante e para a minha vida, aprendizados incríveis”, garante.
O maior deles, segundo o estudante, é que a vida pode ser muito mais simples do que se está acostumado no Brasil. “Temos internet, energia, água potável 24 horas por dia. É só abrir a torneira. E ainda assim reclamamos da Coca Cola quente, da refeição que demorou demais no restaurante, da falta do queijo para colocar no pão.”
No Sudão, continua Guilherme, crianças de quatro ou cinco anos trabalham em condições precárias para ter o que comer no fim do dia, e não é por bolacha ou sanduíche, é por arroz e água. “Ver isso é de doer o coração. Ver que tem tanta gente em tamanha tristeza e carência me deixou abalado. São aprendizados que vou levar para vida. Se todos vivessem uma experiência dessa, o mundo seria diferente.”