Daniel Medeiros*
O irracionalismo não admite o pensar, o diálogo interno. Só há o absoluto, o fixo, o corporificado em palavras: nobreza da alma, sangue, raça, ariano. Palavras concretizadas, ídolos a serem adorados. (Henrique Honigsztejn).
Freud, em comunicação a uma associação judaica, em 1926, disse que, a partir da sua condição de judeu, desenvolveu duas características muito importantes para o seu trabalho: a de não alimentar preconceitos e de não temer ir contra à “maioria compacta”. Lembrou que a religião mosaica rejeita os ídolos e que de D’us não nos cabe sequer dizer Seu nome, quanto mais representá-lo de qualquer forma. A essa abstenção das imagens seguiu-se um desenvolvimento das formulações abstratas e, com isso, um esforço interpretativo do mundo, com um grande ganho para a cultura. “Somos o povo do livro”, como lembrou o escritor e ativista israelense Amós Oz, autor do importantíssimo “Como curar um fanático”: “A continuidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou escritas, num sempre expansível labirinto de interpretações, debates e discordâncias, e numa interação humana única.”
Na História, verificamos que todo governo autoritário volta-se primeiro contra os jornais e livros, depois contras as universidades, professores e cientistas. Trata-se de processo concomitante: na medida em que o governo autoritário se consolida, as vozes, as ideias e seus locais de trocas e formação precisam ser calados.
O ídolo precisa do olhar fixo, da mente obliterada, da fala direcionada apenas para a repetição e não para o compartilhamento e nunca para a observação dissonante. Por isso, a arte fascista era tão monótona e toda e qualquer forma de inventividade e rompimento dos cânones era vista como “arte degenerada”.
Muito antes de Freud e dos estados totalitários, o inglês Francis Bacon já lançava as bases das Ciências, falando sobre a importância de cuidar da mente para evitar que as distorções dos ídolos impedissem o “bem pensar”. O ídolos de Bacon eram: a generalização a partir de experiências pessoais; a aceitação somente daquilo que concorda com o seu pensamento; a torção de conceitos e seu uso de maneira equivocada; os dogmas e as ideologias, a crença em tradições e em “autoridades” como se fossem expressões inequívocas da verdade. Todos estes ídolos são os inimigos do bem pensar, do pensar que transforma e amplia o poder sobre a natureza, criador de cultura e promovedor das civilizações.
É importante ressaltar: ídolos são mais a expressão do medo da mudança do que do desejo de permanência. Não é à toa que todos os governantes autoritários encontram seu público nas pessoas desesperadas por terem ficado sem nada ou nas pessoas ansiosas pelo medo de perderem seu muito. O horizonte mágico dos ídolos é a manutenção do que se tem ou a recuperação do já tido. E na demonização da experiência, da busca por sentidos novos, pelo desfazimento das fronteiras da pátria, da família, da propriedade, do sexo, entre outros ídolos que pairam, dourados, na base dos montes, alienando os povos, minando suas vontades, criando uma falsa dependência, como objeto de gozo ao qual se recorre pela certeza do prazer repetido.
O combate aos ídolos foi, ao longo dos tempos, a condição do avanço do conhecimento e do enriquecimento da Cultura. Os momentos históricos de espaços livres para o debate, no qual a diferença entre as pessoas não era considerado empecilho para a produção dos saberes, foram determinantes para o desenvolvimento do que chamamos de Cultura Ocidental. Por isso, o alerta do filósofo e psicanalista Cornelius Castoriadis, em sua monumental obra “As encruzilhadas do Labirinto”: Sustento que a história humana, assim como as diversas formas de sociedade que conhecemos nesta história, é essencialmente definida pela criação imaginária. Imaginário, nesse sentido, não significa evidentemente fictício, ilusório, especular, mas posição de novas formas, e posição não determinada, mas determinante; posição imotivada, da qual não pode dar conta uma explicação causal, funcional ou mesmo racional.
Ou seja: nossa capacidade de criar e de nos recriarmos, de fazer e de nos refazer, de imaginar e não ficarmos presos aos modelos impostos, é nosso passaporte para um futuro mais rico e interessante, um imaginário radical e libertador, única garantia da autonomia, nossa marca identitária mais importante e valiosa.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros