Por Mauricio Pimentel*
Sempre que se inicia um projeto de produto ou de solução tecnológica, como um aplicativo, um sistema ou um site, as primeiras perguntas que surgem são “quem é o público?”, “qual a definição de perfil?” e, como se diz no desenho do plano de ação, “qual a persona?”.
Entende-se que, ao definir um conjunto de atributos, qualidades, desejos, local de moradia, condição social ou grau de instrução, pode-se direcionar as soluções a esse perfil amplo e representativo de uma categoria de pessoas, como os indivíduos que pertencem a essa classe devem preferir ou querer e, com isso, aumentar de sobremaneira a chance de “acertar na mosca” e, assim, oferecer de modo muito preciso as soluções desejadas, seja na forma, no conteúdo ou no detalhe.
O que normalmente se faz é estabelecer essas características segundo algumas dimensões. Por exemplo:
Demográfica: Mulheres, de meia idade, alta renda, boa formação profissional, mães, moradoras de bairros de classe alta B.
Econômica: Renda acima dos 40 salários mínimos, alto poder de compra, gosto pelo luxo ou marcas diferenciadoras.
Costumes: Gostam de viajar, são independentes, têm grande círculo de amigos, trocam de carro no máximo a cada 3 anos.
E assim por diante, podendo classificar viés político, gosto por arte, opiniões nas redes sociais, time de preferência, gosto por praia ou campo, esporte praticado, estado civil, modelo de relacionamento, entre tantos outros atributos que qualifiquem e permitam o agrupamento em torno de uma predição de consumo ou tendência de decisão.
Mas como lidar com isso quando o grande prestador de serviço é o Estado, o governo, seja federal, estadual ou municipal? O Estado não pode se dar ao luxo desses recortes, classificações ou escolhas. O estado é para todos e, aqui, todos deve significar absolutamente todos.
Não importa para o serviço público prestado quais os atributos demográficos, salvo os que definem se o serviço pode ou não ser entregue a alguém, como restrição maior ou menor de idade, por exemplo. Não cabe uma oferta para os abastados e outra para os mais humildes ou, ainda, para os que concordam com as premissas políticas de um governo em detrimento aos que dela discordam. Pelas paixões, pelas decisões de cunho íntimo, pela profissão escolhida ou pelo time de preferência.
Ou seja, e repetindo, quando dizemos que a oferta de serviços públicos é para todos, é para absolutamente todos. Como, então, tratar as diferenças? As necessidades específicas? As capacidades individuais? Os diferentes modelos mentais? Idades, crenças, gêneros? Eis aí o enorme desafio que gostaria de chamar a atenção do leitor.
Derivada dessa generalidade e amplitude de alcance dos serviços públicos ofertados a uma população inteira, também é ampla e irrestrita a fronteira de atributos dos usuários dos sistemas, soluções e canais de relacionamento com os governos – mediados pela tecnologia que claramente deve dar cobertura às condições diferentes de quem é igualmente cidadão.
Na proposta de digitalização de determinados serviços de balcão, não raro nos defrontamos com pessoas de mais idade que não lidam bem com a tecnologia. No uso dos novos modelos de comunicação é comum encontrarmos quem tem restrições no acesso, na leitura ou entendimento do conteúdo. Ou ainda que está limitado por uma restrição motora temporária ou permanente. É comum a tentação de oferecermos soluções que funcionem num aparelho de smartphone com capacidades elevadas, acima das mais simples do mercado. Fato é que a cidadania não se importa com o modelo do smartphone disponível, ou seja, as soluções tecnológicas do serviço público devem se orientar pelo mais amplo, pelo mais acessível e pelo mais democrático.
Isso pode nos fazer crer que o estudo do uso (usabilidade) perdeu sua importância. Nada disso. Na verdade, ganha muito em espaço e assume um desafio muito maior do que o original: o de ser inclusivo, engajador e útil a um número muito maior de perfis teoricamente desenhados e de proporcionar o crescimento impactante da cidadania independentemente de critérios escolhidos.
Por isso, tomo a liberdade de adaptar, mas repetir, algo dito nas linhas acima: “A tecnologia ofertada aos cidadãos como serviço público deve atender a todos, absolutamente todos”. Este é mais um desafio do que um método.
*Mauricio Pimentel é diretor de Sistemas e Inovação no Instituto das Cidades Inteligentes. Palestrante, professor de MBA, apaixonado por gente e por tecnologia.