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A eleição contestada

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Daniel Medeiros*

 

A apuração foi lenta, demorada. Pela primeira vez, usava-se uma cédula oficial para que o povo escolhesse o seu candidato a presidente. Eram quatro os postulantes ao Palácio do Catete, então sede do executivo nacional, naquele ano de 1955: por uma coligação de seis partidos, destacando-se o PSD e o PTB, o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek; pela UDN, o general e ex-número 2 da Revolução de 30, Juarez Távora; pelo PSP, o ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros (conhecido pelo slogan apócrifo “rouba mas faz”); e pelo PRP, o ex-líder fascista, Plínio Salgado. Aliás, a candidatura do ex-todo- poderoso da AIB acabou garantindo a vitória de Juscelino, acusado pelos conservadores de ser apoiado pelos comunistas, porque Plínio tirou votos preciosos do candidato Juarez Távora. O resultado das eleições foi o mais desconcertante daquele período de ensaio democrático: JK teve 35,68% dos votos; Juarez, 30%, Ademar, 24% e Plínio Salgado pouco mais de 8% (o Estado que mais lhe deu votos foi o Paraná e, na eleição seguinte, garantiu a ele uma cadeira de deputado federal).

Não havia segundo turno e, portanto, Juscelino estava eleito. Mas a UDN, liderada pelo jornalista Carlos Lacerda, não aceitou o resultado, alegando que o candidato mineiro não havia obtido a maioria absoluta dos votos. Desenrola-se um atabalhoado plano para impedir a posse de JK. Muitos militares opunham-se ao seu nome, em face de sua proximidade de Getúlio Vargas – Juscelino foi o único governador a ir ao velório do velho caudilho – e também do alegado apoio dos comunistas, eterno fantasma, tônico das conspirações direitistas.

O vice, Café Filho, afasta-se do governo alegando problemas de saúde. Assume o udenista Carlos Luz. Entre os apoiadores do presidente eleito, acende o sinal amarelo: aquela doença repentina parecia uma estratégia para colocar nas mãos de Carlos Luz a tarefa de impedir a posse de JK, dando um golpe civil com apoio militar. 

Nesse momento, entra em cena o personagem inusitado, conhecido por poucos, mas admirado por muitos: o cumpridor da Constituição. No caso, tratava-se do ministro do Exército, o general Teixeira Lott. Lott coloca os tanques nas ruas, impede o presidente da Câmara e dá posse ao vice-presidente do Senado, o catarinense Nereu Ramos, que completa o atribulado mandato de Getúlio e entrega a faixa presidencial ao vencedor das eleições, Juscelino Kubitschek. 

Juscelino foi o primeiro presidente, desde Artur Bernardes – que governou entre 1922 e 1926 – a completar um mandato presidencial recebido por outro presidente eleito. Depois dele, Jânio ficou sete meses no cargo; o vice, João Goulart, foi derrubado por um golpe civil-militar; amargamos 21 anos de ditadura; na volta aos regimes civis, o presidente eleito indiretamente, Tancredo Neves, morreu antes de assumir e o primeiro presidente eleito pelo voto direto em 29 anos, Collor de Mello, foi afastado por um processo de impedimento. Durante seu mandato, JK sofreu duas tentativas de golpe, lideradas pela Aeronáutica. Ambas fracassaram. Em 1964, logo após o golpe, agora exitoso, Juscelino foi acusado pelos militares de corrupção e de apoio comunista e foi cassado, perdendo  seus direitos políticos. Foi para o exílio. Sem se acostumar com a vida no estrangeiro, voltou ao Brasil no final dos anos 60. Em 1976, morreu em um acidente de automóvel que, para muitos, pode ter sido provocado. Não há provas disso. No seu velório, dezenas de milhares de pessoas compareceram. A memória popular resistiu ao arbítrio.

Como diz o ditado popular, a Democracia no Brasil não é para amadores. No entanto, para o próximo pleito, eivado já de disparatadas acusações, ensombreado pelo temor da ruptura institucional, dolorosamente manchado por atos de violência e por vítimas fatais, o que se espera é que a lei seja cumprida. Como disse Juscelino no seu discurso de posse, sentindo ainda os tremores da crise que quase o abateu e sabendo que não seria a última vez que um candidato eleito teria de passar por aquilo: “Não duvidamos, mesmo nas horas mais difíceis, que o nosso país já estivesse amadurecido suficientemente para que as regras e fundamentos da moral e do direito resistissem a toda sorte de desregramentos da paixão.”

E concluiu, dizendo: ”O que se consagra aqui, também e muito mais, é a vontade popular, fonte de toda a autoridade nas democracias. O que proclama este Tribunal é a submissão à vontade do povo; o que defende o ato de hoje é a confiança e a esperança popular na lei.” 

Que seja assim, sempre.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo. 

@profdanielmedeiros

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