Norton Frehse Nicolazzi Jr.*
“Ouviram da Bahia as margens plácidas / de um povo heróico, negro, indígena e cheio de mulheres o brado retumbante.” Quem dera o Hino Nacional Brasileiro trouxesse, entre suas palavras rebuscadas e seus instrumentos afinados, uma história mais parecida com aquela que o Brasil colônia realmente viu acontecer. Celebração da efeméride que rompeu os laços políticos da então colônia ibérica com sua metrópole, Portugal, o bicentenário do histórico 7 de setembro de 1822 é apenas parte do que devemos ao nosso passado repleto de heróis desconhecidos, que lutaram – e morreram – bravamente por um início de país.
Na Bahia, no Piauí, no Maranhão, no Pará, em Pernambuco e outros lugares, muito sangue de homens e mulheres negros e indígenas, tantos deles escravizados, precisou ser derramado para que Dom Pedro I pudesse, naquele início de setembro, erguer sua espada e gritar “Independência ou morte!”. Como de costume, no Brasil, os créditos ficaram com quem podia mais. Mas, longe de ser pacífico, nosso processo de independência teve envolvimento fundamental da população, principalmente a mais pobre e vulnerável. Ele também começou bem antes e terminou bem depois daquele único dia.
Desde a chegada da família real e da corte ao Brasil, em 1808, a fisionomia colonial foi gradativamente esmaecendo por um processo de “modernização”, que contou com a instalação do Conselho de Estado, da Corte Suprema, do Conselho Real da Fazenda, da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação e do Banco do Brasil. A reboque veio a permissão para a instalação das primeiras tipografias, até então proibidas (vale lembrar que o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, era publicado na Inglaterra). O desembarque da missão artística francesa, em 1816, que trouxe arquitetos, pintores, compositores, botânicos, zoólogos e outros cientistas, foi responsável pela criação de novos prédios e pelo registro da geografia, flora e fauna brasileiras. Um novo rosto, esse mais brasileiro do que português, ia se delineando.
Se, no papel e nas relações políticas, os embates eram mais diplomáticos que práticos, nos recônditos brasileiros houve guerra de verdade. Muita guerra. Um número incalculável de cidadãos comuns engrossou as linhas de frente para combater as tropas portuguesas, bem mais preparadas e com um arsenal bélico adequado. Enquanto isso, os brasileiros dispunham de facas, facões e outras armas que encontravam em suas próprias casas. Não à toa, as baixas eram muito mais frequentes entre os “soldados” daqui.
Conta a tradição oral que em Itaparica, na Bahia, um grupo de marisqueiras, liderado por Maria Felipa de Oliveira, ateou fogo em dezenas de embarcações portuguesas e foi capaz, ainda, de aplicar uma surra de cansanção – planta que provoca queimaduras na pele – em marinheiros falsamente seduzidos por elas. Se Maria Felipa foi ou não real, pouco importa. Porque ela é muito real, até hoje, no orgulho e na memória do povo que verdadeiramente fez a Independência acontecer.
E, se Maria Felipa tiver entrado para a história sem nunca ter existido de verdade, uma só heroína irreal ainda seria insuficiente para compensar a quantidade muito maior de heróis reais que entregaram suas vidas pelo “sol da liberdade”. Às margens do rio Jenipapo, no Piauí, numerosas covas sem identificação seguem “deitadas eternamente em berço esplêndido”, embora seus ocupantes jamais possam ser lembrados e celebrados. São, também, brasileiros que morreram lutando contra os portugueses, em uma das batalhas mais sangrentas daqueles anos. Que celebremos Maria Felipa, então, como símbolo desses tantos anônimos que pereceram.
Em janeiro de 1822, as Cortes portuguesas queriam que Dom Pedro I retornasse a Portugal, é verdade. E ele decidiu, influenciado por Dona Leopoldina e José Bonifácio, responder com um “fico!”. O episódio ficou conhecido pelo texto criado pelo Senado e atribuído ao príncipe regente: “Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico”.
Meses mais tarde, em setembro, D. Pedro retornava a São Paulo, vindo de Santos, quando, às 16 horas do dia sete, recebeu documentos e mensagens pelo correio da Corte. José Bonifácio lhe enviou carta solicitando seu imediato retorno ao Rio de Janeiro, com as seguintes palavras: “Senhor, o dado está lançado, e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores”.
Segundo o padre Belchior, que acompanhava a comitiva, D. Pedro, tomado de fúria, reuniu sua guarda e jurou, com espada empunhada: “Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil”. O sangue derramado, no entanto, sempre esteve longe de ser o dele.
*Norton Frehse Nicolazzi Jr. é professor de História e coordenador do Núcleo de Evolução de Conteúdo do Sistema Positivo de Ensino.