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Crise da COVID-19 levou laboratórios brasileiros à era do diagnóstico molecular

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Guilherme Ambar*

Com uma única amostra biológica de um paciente, já é possível identificar não só se está infectado, mas detectar com precisão um entre até 15 patógenos que podem ser responsáveis por doenças. Esta inovação, que abre as portas para o diagnóstico das mais importantes endemias que afetam o Brasil e os demais países da América Latina tornou-se possível, curiosamente, por causa da epidemia da COVID-19. É que hoje, ao contrário do que acontecia até a chegada do coronavírus, mais de uma centena de laboratórios brasileiros estão preparados para realizar o diagnóstico molecular, com o emprego dos testes de qPCR.
No início de 2020, quando a nova epidemia mostrou sua força inusitada e com incrível velocidade usou a crescente globalização para se espalhar pelo mundo, a imensa maioria dos laboratórios brasileiros foi pega de surpresa. Uma rede de laboratórios que em 2019 recebia mil amostras diárias para analisar, recebeu no dia 19 de março de 2020 um total de 14.000.
Tão grave quanto o imenso salto da demanda de análises laboratoriais, foi a necessidade de identificar não apenas a presença de anticorpos específicos, como era usual, mas o tipo de variante responsável pela infecção. E isso só era possível pelo diagnóstico molecular, longe do alcance da maioria dos laboratórios brasileiros.
O grande público não ficou sabendo, mas com menos de uma dezena de laboratórios equipados com os equipamentos computorizados capazes de identificar o tipo de variante do coronavírus e todos eles agrupados nos estados mais desenvolvidos, uma operação de guerra teve que ser montada. Milhares de amostras para serem testadas foram levadas de carro, ônibus e de avião de estados do Centro-Oeste e Nordeste para laboratórios de estados onde se concentravam os laboratórios melhor equipados.
Agravante do problema, o maior fabricante dos equipamentos de análise dos testes PCR, os Estados Unidos, proibiu a exportação dos mesmos para, como era de esperar, privilegiar o diagnóstico de sua própria população. Foi a oportuna oferta de 132 equipamentos para análise e leitura dos resultados dos testes, em boa hora doados por um laboratório coreano ao Ministério da Saúde e rapidamente distribuídos por todos os estados, que evitou que o Brasil tivesse imensa dificuldade para identificar onde predominava a infecção pela variante, Alfa, Delta, Ômicron, BA1, recombinante e várias outras infecções que perderam visibilidade frente aos altos números da COVID-19.
O público também não acompanhou a ingente tarefa de treinar laboratoristas em praticamente todos os Estados para operar os equipamentos computorizados, para interpretar os resultados e também para a manutenção desses equipamentos. É sem negar certo orgulho que me refiro aos funcionários da empresa que dirijo, responsáveis que foram por esse treinamento e toda a logística envolvida. Reitero que não foi fácil. Basta lembrar que o diretor de um laboratório nacional confessou que seu maior problema foi convencer os treinandos a manusear as amostras recebidas as quais, num primeiro momento, eram tão temidas que ninguém queria tocá-las.
A capacidade de adaptação do brasileiro permitiu, porém, que os laboratórios se capacitassem depressa. Em pouco mais de um ano, o país passou a ter condições de realizar milhões de testes qPCR diários, a epidemia refluiu, apesar de não estarmos livres de novos importantes surtos e localizados, como ocorre ainda agora. À medida que os meses passavam, as infecções diárias caíram de quase uma centena de milhar por dia para uns poucos milhares. Devidamente equipados, os laboratórios atualmente alertam a Saúde Pública quase no mesmo momento que uma variante surge em determinado ponto do país ou quando se inicia uma mudança no rumo da epidemia.
Recentemente foi a rede de laboratórios bem equipados que permitiu mensurar a gravidade do novo surto de casos, que de 1.600 diários, saltaram para 31.000. Essa capacidade diagnóstica permite que se saiba com exatidão em que estados cada variante está se propagando e também a avaliação da capacidade de defesa da população de cada área com a vacina a qual, infelizmente, ainda não atingiu os níveis desejados.
Com o recuo relativo da COVID uma nova realidade vai se impondo, à medida que cresce a capacidade ociosa dos laboratórios que se equiparam para a emergência. Hoje, todos os estados contam com laboratórios bem equipados para fazer grande quantidade de diagnósticos moleculares não só da COVID mas também da dengue, do HPV, Chikungunya, Zika, Aids e das diversas cepas do vírus da influenza, causador da gripe.
Essa capacidade é muito benvinda para a Saúde Pública, principalmente agora que os modernos equipamento são capazes de, com uma única amostra, detectarem diferentes vírus ou cepas, indicando com absoluta segurança o patógeno causador da moléstia.
Podemos afirmar com segurança que a era do diagnóstico molecular chegou ao Brasil, certamente com algum atraso, mas certamente veio para ficar. Essa capacitação laboratorial do país abre as perspectivas para que, pela primeira vez, possamos desenhar um mapa real de onde, quando e em que quantidade o vírus de cada endemia que afeta nosso povo está atacando.
Este é o passo essencial para que possamos ter um Brasil mais saudável e quem sabe totalmente livre de certas doenças, como nos livramos da varíola, da poliomielite e de outros males que tanto fizeram sofrer nossa população.

*Guilherme Ambar é biólogo e CEO da Seegene do Brasil

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