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Sepultamos Pelé… e há exatos 40 anos, Mané Garrincha

Jacir Venturi 

Mané Garrincha foi bicampeão mundial nas Copas de 1958 e 1962. Na última, com a contusão de Pelé, o gênio das pernas tortas foi de longe o principal jogador. Na semifinal contra o Chile, donos da casa, Garrincha liquidou a defesa adversária, mesmo litigando contra uma torcida hostil e um juiz peruano gatuno. O jogo terminou em Brasil 4 x 2 Chile, com dois gols de Garrincha e um cruzamento certeiro para Vavá cabecear. No dia seguinte, o Jornal chileno El Mercurio estampou: Garrincha: ¿de qué planeta usted viene?

Até o circunspecto Carlos Drummond de Andrade se rendeu aos encantos de Mané, quando o craque morreu de cirrose hepática, fruto de alcoolismo, em janeiro de 1983: “foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam e não há outro Garrincha disponível”.

Foi um legítimo representante do futebol-arte, alegria do povo. Fez 16 gols na seleção pela qual jogou 60 partidas, sendo 52 vitórias, 7 empates e apenas uma derrota, injusta por ser a sua última partida, quando a seleção canarinho perdeu para a Hungria por 3 x 1, na Copa de 1966, sem Pelé, que estava contundido. No jogo anterior, o Brasil venceu a Bulgária por 2 x 0, com gols de Pelé e Garrincha, a última vez que jogaram juntos. O camisa 10 e o camisa 7 estiveram concomitantemente presentes pela seleção em 40 jogos, nenhuma derrota e 35 vitórias.

Em 2023, Garrincha, que  em vida recebeu a alcunha de Alegria do Povo e Anjo das Pernas Tortas completaria 90 anos. Nasceu em Pau Grande, distrito de Magé (RJ), onde parou de estudar no 2º ano do antigo primário, hoje Ensino Fundamental. As pernas tortas que tanto contribuíram para as futuras glórias de sua carreira foram decorrentes de uma distrofia física: a sua perna direita era 6 cm mais curta que a outra, com as quais desenvolveu uma habilidade inata para confundir os adversários. Vida errática, boêmia, bebedeiras e múltiplas relações amorosas, das quais teve 13 filhos. Um deles com uma sueca, caso extraconjugal quando da Copa de 1958. Já separado, assumiu uma relação de 17 anos com a cantora Elza Soares, bastante conflituosa, eivada de agressões, traições e ciúmes, que terminou um ano antes de sua morte. De seu jeitão matuto, ingênuo, brejeiro, pairam histórias jocosas. Vejamos:

Fez “arte” na capital do Renascimento

Já na véspera da Copa de 1958, num amistoso contra o Fiorentina, em Florença, Garrincha driblou toda a defesa italiana e, em seguida, o goleiro. Ficou livre para chutar em direção ao gol. Parou a bola, viu o zagueirão em disparada na sua direção e, endiabrado, deu um drible tão estonteante que o defensor bateu com a cara na trave. Só então – pimba! – um golaço. O técnico Vicente Feola surtou de raiva. Irritadíssimo, chamou-o de moleque irresponsável, atrevido e afirmou que, por isso, perderia a condição de titular. E assim o fez: a desfeita ao adversário custou ao nosso Mané a reserva – de Joel – nos dois primeiros jogos na Copa da Suécia.

O rádio que só falava alemão

Durante a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o nosso grande ponta-direita entrou numa loja e se encantou com o rádio que estava na prateleira. Pediu para ligar na tomada e ouviu uma locução numa língua incompreensível. Ao seu lado, o zagueiro Orlando Peçanha – tremendo gozador – sussurrou: – Você está pensando em comprar o rádio? Não, não, ele só fala alemão! De pronto, o nosso querido Mané desistiu de seu sonho de consumo.

Já combinou com os russos?

Garrincha detestava duas coisas: concentração e as preleções dos técnicos. Esquemas táticos? Soavam-lhe como palavrões! Jogadas criativas e dribles desconcertantes – e sempre para a direita – eram suas características. Claro que seus marcadores sabiam disso, mas qual o quê!? Levavam sempre a pior! Um terror para os zagueiros adversários. Na Copa de 1958, véspera do jogo contra a Rússia, então URSS, a preocupação era Tsarev, temível lateral incumbido de uma missão impossível: segurar Mané. O técnico Feola se esmerava junto ao nosso craque: “quando o Tsarev vier em disparada, passe a bola. Quando o outro beque vier pela direita, drible pela esquerda…”. Enfim, havia mil recomendações, cabendo as iniciativas aos russos. Sagaz, Mané Garrincha lançou a pergunta que fez história: – O senhor já combinou tudo isso com os russos?

Presente naquela memorável partida, Nilton Santos conta que “os russos começaram marcando mano a mano. Tsarev foi o primeiro a ser abatido por Garrincha. De repente, um amontoado de russos estava em volta dele. Era hilariante o desmanche que Mané fazia por ali”. Foi um jogo memorável e uma grande vitória de 2 x 0, com o nosso craque jogando à sua maneira. Drummond mais uma vez prestou sua homenagem: “se há um deus que regula o futebol, Garrincha foi um de seus delegados, incumbido de zombar de tudo e de todos nos estádios”.

É evidente que Garrincha foi um fenômeno. E se no Sistema Solar só existe um rei que brilha intensamente durante o dia (o Rei Sol), à noite, quando o astro-rei está ausente, há planetas e outras estrelas também muito brilhantes na constelação. Assim foi Garrincha, que brilhou espetacularmente no escrete canarinho quando da ausência de Pelé.

Edson Arantes do Nascimento, nascido em 1940, faleceu em 29/12/22, abatido por um câncer de cólon. Como ninguém, com enlevo e paixão, Pelé engrandeceu o nome do Brasil diante do mundo. Pelé é eterno, e a melhor grafia de seu epitáfio encontrei em uma capa de revista: Pelé (1940 – ∞), onde ∞ representa o infinito, a eternidade. Como outro rei de minha geração: Elvis (1935 – ∞).

 
Jacir J. Venturi, professor e diretor de escolas, autor de 4 livros. Cidadão Honorário de Curitiba.

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