Fanatismo: a doença da certeza

Daniel Medeiros*

 

O fanático é aquele que não duvida. É uma pessoa inteira, plena, sem fraturas. Por isso, completamente fora da realidade. Tudo, na natureza física e humana, é contingente, precário, fluido e temporário. Mas na mente do fanático isso não é real. Para ele, o certo é aquilo que é possível submeter a uma régua absoluta e atemporal. O resto, o que não se enquadra, encaixa, adequa, é falso, perigoso. Por isso deve ser eliminado, anulado, cancelado, expulso. Porque macula, ameaça, interrompe, corrompe a pureza do certo, que é certo porque não admite circunstâncias.

O fanático quando pensa desse jeito, não pensa em si. Age pelo que considera ser o bem dos outros. Sente-se responsável por acreditar ser um dos poucos a enxergar limpidamente, enquanto tantos não conseguem dissipar a nuvem escura que se forma diante de seus olhos. E, por causa disso, precisam ser guiados, mesmo contra a sua vontade, pois se trata de uma vontade condicionada pelo mal, portanto, falsa, traiçoeira, ignóbil. 

O fanático não se importa que a maioria pense diferente dele, porque conhece o sentido da palavra “eleito” e sabe que poucos terão acesso ao conteúdo verídico do que, de fato, faz diferença. E os eleitos, porque são os eleitos, têm o dever de nunca se eximir de suas responsabilidades, seja contra os hereges – que desvirtuam a verdade -, seja contra os inocentes – que desconhecem e são fracos diante dos argumentos dos falsos. 

O fanático vê-se como um salvador, um libertador. E tudo o que  enxerga de puro e belo em si é o que faz com que seja um agente perigoso para qualquer sociedade democrática e plural. 

Há fanatismo em todas as instâncias. Há o fanatismo político, de costumes, o fanatismo de ideias e de crenças. E, como é possível imaginar, existe uma irresistível atração entre as diversas formas de fanatismo, criando correntes que se aliam ou mesmo se sobrepõem, ou ainda se enfrentam – fanáticos contra fanáticos –  em facções nas quais uma exigência maior de postura ou pensamento cria uma camada ainda mais profunda de distanciamento da realidade, aprisionando o fanático em um mundo próprio, impermeável, quase insondável, ao qual é comum (e equivocado) chamar de loucura.

O fanatismo é resultado de uma busca simplória de explicação das complexidades da vida e dos indivíduos. O fanático é, por definição, um ignorante. Não propriamente um ignorante por falta de condições, acesso ao conhecimento, mas, muitas vezes, por recusa deliberada. Quantos professores, médicos, advogados, pessoas com idade e experiência abriram mão das convicções construídas pela civilização e embarcaram no universo místico das certezas dadas e irrefutáveis. O fanático é um desistente da vida. É um entusiasta da ideia de que carrega consigo um segredo que precisa ser partilhado por todos, a qualquer custo. Daí o risco que representa.

É comum afirmarmos que o contrário da verdade é a mentira. Mas o contrário da verdade é a certeza. A verdade é sempre histórica, mesmo que algumas dessas verdades – particularmente os axiomas matemáticos –  sejam bastante resilientes ao tempo. No entanto, mesmo elas, acabam, em algum momento, sendo questionadas. 

Sócrates, quando formula sua crítica aos sofistas, diz que sabe que nada sabe, mas busca sempre o saber. É um amante do saber e não um sábio. Ser um sábio é ter chegado ao fim da estrada e ela nunca tem um fim. Dessa resistência – que custou-lhe a vida -, Sócrates deixou o legado que é tão importante resgatar: lutar contra essa doença da certeza que nos encurrala na superfície de frases soltas e gestos violentos, e assumir na nossa contingência e fragilidade nossa maior virtude: a de sermos projeto individual e projeto coletivo, capazes de pensar utopias e construir soluções mais amplas, plausíveis e compartilháveis para o nosso tempo.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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