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A pílula vermelha

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Daniel Medeiros*

 

Conhecer a verdade sempre foi uma obsessão para os seres humanos. Platão, exasperado com os sofistas que afirmavam que o conhecimento é subjetivo, relativo, – “o homem é a medida de todas as coisas”, sentenciava Protágoras – e que as decisões dependem do consenso coletivo para existirem de fato, dizia que, ao contrário destes, o necessário é que exista uma “medida para todos os homens”. Como não encontrava ao seu redor uma referência para usar de balizamento para essa Verdade objetiva, Platão transferiu para outro mundo a Certeza e condenou os homens a uma vida de treino mental para esquecer o mundo de nuances (as sombras que o apavoravam) e focar na luz, na luz que tudo clareia e mostra o eterno mesmo da verdade sem reticências. 

No filme “Matrix”, o personagem Morpheus – nome que sempre me pareceu uma fina ironia dos irmãos e agora irmãs Wachovski, já que, na mitologia, Morfeu, um dos filhos de Hipnos, o deus do sono, era capaz de assumir várias formas diferentes – oferece a Neo duas pílulas, uma azul e outra vermelha. Se tomasse a primeira esqueceria tudo o que não fosse o mundo perceptível; se tomasse a segunda, a vermelha, conheceria a verdade. E a verdade é que houve uma marcha histórica de dominação dos homens pelas máquinas, que os reduzira a fornecedores de energia, encarcerados em um casulo, como antifetos responsáveis por alimentar a máquina-mãe. 

Conhecer a verdade é visto, desde o raivoso Platão até as engraçadas irmãs Lana e Lilly, como o caminho para alcançar a Liberdade. Mas que Verdade é essa? Bom, aí está o busílis. 

Para a extrema direita de origem norte-americana, a pílula vermelha abre as consciências para o mundo da dominação cultural marxista, que vem destruindo lentamente os valores “atemporais”, responsáveis pela consolidação da civilização liberal-branca-cristã, com suas ladainhas de feminismo, identitarismo, igualdade racial, globalismo, entre outras perversões. A grande mídia, além das universidades e dos partidos de esquerda – que são todos os que não se alinham com a extrema direita – são os grandes responsáveis pela disseminação dessas falsidades. É preciso, portanto, acordar as pessoas “de bem” para que elas possam defender o legado da civilização ocidental, antes que o fim do mundo se torne inevitável. Essa é a Verdade. Para eles. Sair da caverna das sombras e da escravidão implica aceitar esse caminho como único e inevitável. E segui-lo. 

O Brasil embarcou recentemente na moda da pílula vermelha. Já é um ícone do besteirol institucional a frase do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmando não haver problema que o nosso país se torne um “pária internacional” desde que defenda as “ideias certas”. E as “ideias certas” são a condenação do globalismo cultural marxista e todas as suas vertentes. Essa é a Verdade. Para eles.

No submundo das subcelebridades da internet, vários personagens carregam a bandeira do terraplanismo, da homofobia, misoginia, racismo, gordofobia, etarismo, além do patriotismo tosco, sem nem avermelhar as bochechas, cientes de que têm ouvidos suficientes para garantir a monetização necessária para pagar os boletos do fim do mês. E ainda sobrar um troco pro Campari. Afinal, a Verdade está com eles. A Verdade deles.

Enquanto isso, a nova campanha de vacinação contra a covid volta a sofrer ataques negacionistas. A crença na pílula vermelha e, ao mesmo tempo, a negação da vacina, é a síntese bufa que nem as irmãs Wachovski conseguiram imaginar para a sua tetralogia. Creio que nem Platão, o pai de todas as ditaduras, iria se sentir confortável com essas companhias.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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