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Uma manhã, ouvindo Sartre

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Daniel Medeiros*

 

Esses dias, indo bem cedo para o trabalho, caminhando pelas calçadas da rua Vicente Machado, em Curitiba, tropecei, inadvertidamente, em uma pessoa em situação de rua. Felizmente não a despertei e muito menos a machuquei. Meu pé topou com o pé do homem que dormia enviesado na calçada, a cabeça encostada na parede de uma loja, o corpo como uma lombada para os transeuntes, os pés – enormes – dentro de um chinelo preto gasto e com manchas de tinta, apontando para o asfalto. 

Eu vinha distraído, ouvindo um podcast sobre os 80 anos da obra O Ser e o Nada, de Sartre e, bem 0na hora que o comentarista falava sobre o conceito de má fé, dei o trupicão no homem estendido no chão. Meu corpo se desequilibrou para frente e, primeiro, dei dois passos mais rápidos até voltar à posição ereta, e só então olhei para trás e vi o homem na mesma posição, o rosto virado para mim, a barba escura sobre a pele escura, os olhos fechados, como um cadáver. 

Parei e senti a premência de pedir desculpas, mesmo que tenha agido sem intenção, embora isso não me eximisse de minha responsabilidade, como o filósofo continuava a dizer nos meus ouvidos: “Não é porque Édipo não quis matar o pai e fornicar com a mãe que não é responsável pelo que fez e pagou pelo seu mal arrancando os olhos e vagando com sua culpa pela Hélade”. No entanto, o homem continuava lá, como se a calçada fosse seu leito e a quadra seu quarto de dormir. Fazia uma manhã bem fria e seu rosto tinha um leve tom azulado. Não me ocorreu verificar se ele respirava e muito menos buscar alguma forma de que ele não ficasse tão exposto a outros tropeções. Mas como me julgava responsável apenas pelo que eu fizera, e como aparentemente não lhe causara mal (maior) algum, virei-me e continuei meu caminho, em direção ao meu trabalho, já distraído das palavras do comentarista de Sartre, que agora respondia perguntas da plateia.

Cheguei mesmo a sorrir diante do acontecido, um fato bizarro para uma manhã fria de começo de outono, a ilustrar minha rotina invariável de três dias por semana, quando percorro o mesmo caminho, com a mesma distração, em direção ao mesmo destino, anos a fio, cumprindo o que considero ser alguma coisa cheia de significados. O homem em situação de rua, porém, alterou minha rotina para sempre. Será impossível, desse momento em diante, não ficar atento ao chão à minha frente, para evitar novos encontros desafortunados capazes de provocar acidentes nos homens estirados nas calçadas e em mim, ou em ambos, o que seria indesejável. 

Não que desejo seja uma palavra que ilustre bem o cenário, como se houvesse algo de voluntário na manhã, na caminhada e, principalmente, no sono de morto do homem pobre estirado na calçada sem que ninguém, como eu, seja capaz de pensar um desfecho diferente, como se tanto fosse a natureza dele ser despossuído quanto a minha ser distraído. Talvez, como na Tebas antiga, falte uma peste mandada pelos deuses para nos lembrar de que somos responsáveis pelos nossos atos e que pagamos por nossa negligência, de uma forma ou de outra. Sim, creio que uma peste nos despertaria para esses tempos de exígua humanidade. Com certeza.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.

@profdanielmedeiros

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