Quando cheguei aqui, tudo me estranhava. Tinha dezessete anos e sonhava com um futuro que exigia um outro lugar. Mas esse lugar, agora, era apenas um conjunto de fotos pequenas e um mar de lembranças que inundavam minha mente e provocavam sensações inquietantes no meu corpo de jovem assustado.
Depois de quarenta anos, ainda sou de lá. Se separassem o país, estaria em terra estrangeira, exigindo passaporte da cor de minha pátria de origem. E não se trata de ingratidão: é que esses sentimentos ficam incrustados na alma, misturam-se a eles, é impossível separar, decantar, esquecer. Nenhum marco temporal é legítimo para definir de onde eu sou. Mesmo que mais de dois terços de minha vida eu tenha vivido aqui, e meu filho seja daqui, e meu trabalho, minha casa, a maior parte de minhas memórias, sou uma alma originária do lugar onde primeiro conheci a amizade, a raiva, a privação, o gosto acre do caju verde tirado do pé, do tamarindo que enruga a boca, da jaca doce e oleosa, da imagem do coqueiro sob o céu azul profundo, de meu rosto de criança banhado pela brisa salgada do mar, dos passeios adolescentes pela praça cheia de gente, misturando-me àqueles sons e cheiros, do cinema toda sexta à noite, onde viciei minha imaginação para sempre, dos teatros e shows de cantores com voz rasgada ao som de violões ibéricos e ciganos, do primeiro amor dançando com a menina que tinha um colar com uma pedrinha azul.
Um lugar é um espaço sentimentalizado, um depósito das experiências formadoras do nosso eu reconhecível, que só existe porque existe a memória de sua trajetória. Não há como dizer quando uma pessoa passou a ser de um lugar ou quando esse lugar pertence ou não a ela. O que explica essa tentativa de definir um marco temporal de pertencimento não é uma busca por demarcar direitos, pelo contrário. Só o interesse vil justifica definir um tempo específico para permitir a alguém reivindicar ser de um lugar. E o interesse vil não poderia ser fundamento para nenhuma Justiça. Alegar “segurança jurídica” para separar as pessoas do perfume de suas terras, da memória de seu passado e do passado daqueles que vivem na sua memória é uma forma de violência corporal. E esse tipo de violência não poderia ter uma defesa jurídica nunca. Alegar o direito daqueles que vieram depois e construíram suas vidas no mesmo lugar, tornando-as suas também é como tornar legítima a pretensão dos que se apossaram das casas daqueles que foram expropriados e mandados para os campos, porque, afinal, não tiveram culpa pelo que aconteceu àqueles infelizes e, enfim, um erro não corrige o outro. Isso até seria possível de ser pensado se muitos não tivessem resistido às maldades dos campos e não tivessem sobrevivido, como pessoas e como povo. São essas pessoas e esse povo, como um exército de orfeus, que agora gritam: quero o direito ao meu lugar, ao meu canto, ao meu quinhão de lembranças inalienáveis e infungíveis.
Caetano Veloso disse que fará uma última turnê internacional e depois voltará para a Bahia e cantará apenas por lá. Todo canto é o canto da nossa terra. Todo canto é o canto para a nossa terra. Todo canto exige um canto para se expressar. Na minha cabeça, diariamente, minhas paisagens acolhedoras são as do quintal da minha infância, da rua da minha vila, dos arredores do meu bairro, das praças da cidade onde cresci e conheci pela primeira vez a ambição de viver que ainda me move. Não sou ingrato ao lugar onde vivo, pelo contrário. Por isso, estou aqui. Mas não desaparecerei, espero, sem ainda uma vez, ouvir os cantos de lá. Todos precisam ter direito a esse projeto. Ou então não podemos dizer que vivemos em um país de verdade.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros