Fazer rir é uma função social, diz o filósofo Henri Bergson. E, para rir, é preciso acalmar a sensibilidade, a emoção, pois o riso é uma expressão da inteligência. Rir é o melhor remédio, proclama o ditado popular. Então, por que proibir certos shows pela internet como tem acontecido recentemente? Porque, no caso de vários desses shows, não se trata de humor, muito menos de inteligência, mas de manifestações de preconceito. E, preconceito é crime. E o crime deve ser apurado e punido.
Piadas de “preto”, “loira burra”, “aleijado”, “anão”, “pobre”, “gordo”, “viado”, faz muita gente rir porque reforça o preconceito e escancara as diversas posições de superioridade que marcam nossa sociedade. A pessoa ri porque acha que pode rir dessas pessoas e elas não podem reclamar porque é só “brincadeira”, “não tem maldade”. Daí a grita geral quando o poder público resolve dar um basta nessas manifestações, enquadrando-as na categoria onde elas deveriam estar desde sempre, não tivessem sido toleradas até agora pela leniência geral: a categoria de crime.
O humor não se confunde com manifestação de ódio, racismo, sexismo, homofobia, embora tudo isso continue engraçado pra muita gente. Humor é uma crônica do indivíduo e da sociedade, destacando seus descompassos e suas incoerências, peculiaridades e rotinas, seus elementos de identificação e suas excentricidades. O humorista que encarna a professora, e faz rir repetindo seus perrengues diários; o humorista que fala sobre a mãe, e faz rir porque lembra a todos aquilo que identificamos em todas as mães; o humorista que encarna o ingênuo, o esperto, o dissimulado e por aí afora, em uma galeria de tipos que representam a diversidade de modos de vida que são engraçados porque resumem suas características mais peculiares. Mas a pessoa que provoca risos ao falar do negro que “sempre” faz o trabalho mal feito, da mulher loira que “nunca” é capaz de entender nada, do homem gordo que é humilhado “porque” é gordo ou do homossexual “porque” é homossexual, não está fazendo humor, mas compartilhando uma visão racista, misógina, gordofóbica e homofóbica. E tudo isso é crime. É como querer fazer graça com Dachau, Birkenau, Auschwitz. É como tirar sarro do Holodomor ou do genocídio armênio ou de Ruanda. É como “brincar” com a escravidão negra no Brasil
Os cidadãos que fazem shows explorando esses tipos e essas situações discriminatórias e preconceituosas manifestam-se indignados, alegando cerceamento de suas liberdades de expressão. A lei, porém, é clara ao determinar a responsabilidade que acompanha a liberdade, separando o que é direito do que é violação de direito.
A linguagem popular já informa, há muito tempo, que esse tipo de “piada” é discriminatória. A pessoa que a sofre diz: “Tenho de aguentar essas brincadeiras o dia inteiro”. Ora, se é humor, por que é preciso “aguentar”? A distinção entre brincadeira e bullying é uma boa analogia para compreender a importância de dar um basta nesse tipo de show de horrores de preconceito. Brincar é quando todos se divertem. Divertir-se às custas de alguém não é brincadeira, é violência.
Os shows de piadas envolvendo situações degradantes ou humilhantes de negros, mulheres, gordos, homossexuais, pessoas com deficiência devem ser considerados como manifestações ilegais de preconceito e discriminação. Não há nenhuma relação com liberdade de expressão e, portanto, não tem nenhuma relação com censura, mas com proteção aos direitos dos cidadãos de não serem expostos de maneira discriminatória. Ou os indivíduos compreendem que vivem em uma sociedade democrática, na qual todos têm direitos e que, portanto, o meu direito precisa ser regulado pelo direito dos outros, ou abandonamos esse contrato social e voltamos para a selva. Talvez seja essa a vontade de muitos. Por isso, mais do que nunca, é importante agir para impedir que percamos de vez a régua civilizatória que, bem ou mal, trouxe-nos até aqui.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros