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Entidades médicas alertam para riscos de usar semaglutida manipulada

Entidades médicas alertam para riscos de usar semaglutida manipulada

Associação Americana de Diabetes e entidades brasileiras ressaltam que as fórmulas manipuladas podem trazer risco à saúde; no Brasil, esses produtos não têm aval da Anvisa

Entidades médicas alertam para riscos de usar semaglutida manipulada

Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein

A Associação Americana de Diabetes (ADA) publicou, em dezembro passado, um documento desaconselhando o uso das versões manipuladas dos medicamentos semaglutida e tirzepatida. Esses fármacos são aprovados pela Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, para tratar diabetes tipo 2, reduzir riscos cardiovasculares e auxiliar no controle de peso. Segundo a ADA, as versões manipuladas podem resultar em produtos com concentrações imprecisas ou impurezas, além de não oferecerem a garantia da origem e qualidade dos insumos, o que poderia comprometer a eficácia e a segurança do tratamento.

A semaglutida (vendida pela farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk com os nomes comerciais Ozempic e Wegovy) e a tirzepatida (fabricada pela estadunidense Eli Lilly como Mounjaro) são medicamentos biológicos. A semaglutida tem como princípio ativo substâncias agonistas do hormônio GLP-1, já a tirzepatida é um agonista duplo e estimula também um hormônio chamado GIP. Como resultado, elas diminuem o apetite e a resposta à ação da insulina.

Os impactos no controle do diabetes e na perda de peso são bastante positivos, o que levou à popularização e ao aumento da demanda por esses medicamentos, cujos valores ultrapassam os R$ 1.000 e podem chegar a R$ 3.000 por mês. Por enquanto, apenas a semaglutida está disponível para compra nas farmácias brasileiras. A alta procura pela medicação fez os estoques do produto acabarem em vários estabelecimentos em 2024 —daí porque os manipulados têm ganhado espaço.

A tirzepatida foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em setembro de 2023 para tratamento de diabetes mellitus tipo 2, mas o medicamento ainda não está disponível para comercialização no país.

Entidades médicas brasileiras endossam o posicionamento da FDA acerca dos manipulados, inclusive publicaram um posicioamento sobre o tema no último dia 4 de fevereiro. O objetivo da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) e da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) é orientar especialistas e a população sobre a possibilidade de falha no tratamento com medicamentos manipulados e efeitos colaterais indesejados.

“A SBD está de acordo com o recente posicionamento da ADA e não indica o uso de semaglutida manipulada em nenhuma situação. A demanda pode exceder temporariamente o abastecimento, resultando em falta intermitente e, nesses casos, a nossa recomendação é a troca por outra medicação aprovada pela Anvisa, como a liraglutida”, orienta o endocrinologista Marcio Mancini, coordenador do Departamento de Obesidade e Síndrome Metabólica da SBD.

De acordo com Mancini, a semaglutida manipulada não é idêntica à semaglutida aprovada pela FDA e pela Anvisa: o medicamento liberado pelas agências regulatórias é feito a partir de uma molécula biológica; já os manipulados são sintéticos e contêm compostos em forma de sais (como acetato de semaglutida ou semaglutida sódica) ou outras substâncias na formulação, caso das vitaminas B12 e B6. “O impacto dessas modificações na farmacocinética, farmacodinâmica, eficácia e segurança é desconhecido. Compostos manipulados não são sujeitos a testes de bioequivalência como exigido para os remédios”, ressalta o especialista da SBD.

Além disso, produtos manipulados podem ter concentrações variáveis e ser dispensados em várias formas, como ampolas, canetas multidose e seringas previamente preenchidas. “A FDA documentou erros de administração de doses cinco a 20 vezes maiores do que as desejadas, por falta de experiência do indivíduo em se autoinjetar, com efeitos colaterais graves, incluindo síncope, desidratação e pancreatite aguda, com necessidade de hospitalização”, diz Mancini. “É importante notar que as consequências danosas do uso disseminado de análogos de GLP-1 manipulados estão começando a ser documentadas. O âmbito real do problema é provavelmente muito maior.”

A Sbem e a Abeso também se posicionam contra o uso de versões manipuladas. “Não indicamos em nenhuma situação. Ozempic e Mounrajo são medicamentos biológicos e o que tem sido manipulado é um produto sintético que ainda não está aprovado pela Anvisa e, portanto, não sabemos a qualidade, a segurança, nem a eficácia”, comenta a endocrinologista Cintia Cercato, membro do Departamento de Obesidade da Sbem e presidente do conselho deliberativo da Abeso.

O endocrinologista Paulo Rosenbaum, do Hospital Israelita Albert Einstein, também desaconselha o uso das versões manipuladas desses medicamentos e ressalta que eles revolucionaram o tratamento do diabetes e da obesidade, com resultados muito consistentes. “Esses remédios provaram que além da perda de peso, eles também têm benefício metabólico e cardiovascular, diminuindo risco de infarto, derrame, insuficiência renal e até casos de câncer”, destaca.

O problema, na avaliação de Rosenbaum, é o alto custo desses medicamentos e a necessidade de uso por longo prazo, o que estaria levando muitas pessoas a buscarem formas mais acessíveis de adquiri-los. “Com internet e mídias sociais, muitas pessoas encontram outras formas de comprar esses remédios mais em conta, importando ou mandando manipular sem nenhum controle. Virou um comércio, vemos muitos casos de falsificação”, alerta o endocrinologista.

Outro ponto de atenção são os casos de quem usa esses medicamentos com finalidade estética, e não para tratamento da obesidade, com acompanhamento médico. “Volta e meia recebo mensagens de pessoas pedindo prescrição de receita para adquirir no exterior, já aconteceu de virem com um frasquinho de vidro escrito tirzepatida e pedirem orientação de como usar. Mas quem atesta a qualidade do que tem naquele vidrinho?”, relata Rosenbaum.

Para o endocrinologista Clayton Macedo, do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor da Sbem, essas medicações biológicas são delicadas e precisam de uma série de cuidados durante sua manufatura. “Um dos principais problemas dos análogos de GLP-1 manipulados é que, por serem medicamentos injetáveis, todo o processo de fabricação deve seguir normas rigorosas que garantam um ambiente completamente estéril e que os componentes atendam aos mais altos padrões de qualidade e pureza. Qualquer falha nesse processo pode comprometer a segurança e a eficácia do tratamento”, avalia Macedo.

Como funcionam as farmácias de manipulação?

Segundo a Anvisa, a manipulação de medicamentos é permitida pela legislação brasileira, desde que esteja de acordo com a resolução número 67/2007. A norma estabelece que as farmácias magistrais “podem transformar especialidade farmacêutica, em caráter excepcional, quando houver indisponibilidade da matéria-prima no mercado e ausência da especialidade na dose e concentração e/ou forma farmacêutica compatíveis com as condições clínicas do paciente, de forma a adequá-la à prescrição.”

Ou seja, as farmácias de manipulação funcionam de maneira diferente de uma indústria farmacêutica convencional: elas não podem produzir medicamentos em larga escala; só podem manipular medicamentos em dosagens diferentes da medicação disponível nas farmácias e têm como objetivo atender a necessidades individualizadas do paciente. Inclusive, toda manipulação de medicamentos necessita da prescrição de um médico.

“Há medicamentos registrados na Anvisa e disponíveis no mercado nacional com os princípios ativos semaglutida (princípio ativo do Ozempic/ Wegovy) e tirzepatida (princípio ativo do Mounjaro), o que não justifica a manipulação por farmácia nas mesmas doses, concentração ou forma farmacêutica aprovadas. Ainda não há avaliação da Anvisa quanto à aplicação dos respectivos ativos por meio de outra forma farmacêutica que não a registrada (caneta injetável)”, declarou a Anvisa, em nota enviada à Agência Einstein.

A agência sanitária esclareceu ainda que a importação, manipulação e comercialização de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) sintéticos não estão autorizadas, “pois sua segurança e eficácia ainda não foram avaliadas.” A sigla se refere às moléculas que representam o princípio ativo de um medicamento. Apenas os IFAs biológicos semaglutida e tirzepatida foram aprovados até agora pela Anvisa.

O que dizem as farmacêuticas

Em nota, a Novo Nordisk informou que “o princípio ativo semaglutida não foi desenvolvido, em nenhum lugar do mundo, para uso em formato injetável em frascos, em cápsulas orais, pellets absorvíveis, fitas ou chip. A Novo Nordisk desconhece a origem das matérias-primas e a forma de fabricação desses produtos. Ademais, a companhia é detentora da patente do princípio ativo semaglutida, de forma exclusiva, até pelo menos o ano de 2026. Assim, não fornecemos ou autorizamos o fornecimento de semaglutida a nenhuma farmácia de manipulação ou outra fabricante.”

A Eli Lilly diz estar preocupada com a proliferação de vendas online e postagens nas mídias sociais envolvendo versões falsificadas da tirzepatida que podem colocar em risco a saúde dos pacientes. “A tirzepatida da Lilly é a única aprovada pelas autoridades de saúde, a farmacêutica é a única fornecedora legal da molécula e não fornece qualquer ingrediente ou princípio ativo para farmácias de manipulação ou qualquer outra empresa. No momento, a tirzepatida não está sendo comercializada pela Lilly no Brasil e ainda não há previsão para a chegada do produto no mercado nacional.”

A Associação Nacional dos Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag) foi procurada pela Agência Einstein, mas informou que os membros da diretoria estavam em recesso e não respondeu até a publicação desta reportagem.

Fonte: Agência Einstein

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