Marta Morais da Costa*
โNรฃo hรก poesia sem asas ao ventoโ
Geraldo Carneiro, poeta brasileiro
A literatura ocidental nasce da fonte da poesia. Homero cantou e registrou em versos oceรขnicos a histรณria de Trรณia e do mundo grego, incluindo mitologia, geografia, costumes, e, acima de tudo, a lรญngua grega e sua mรบsica eterna.
No mundo terreno e mais cotidiano, a poesia embala os cantos de trabalho, as cantigas de ninar, as declaraรงรตes de amor e de ternura, as primeiras liรงรตes de comportamentos e de tabuada. O cรฉrebro infantil reage positivamente aos estรญmulos do ritmo e da sonoridade que veiculam as ideias, os ensinamentos e os conselhos.
As mais diferentes culturas armazenam em quadras, em poemas, em epopeias monumentais a sabedoria adquirida pelos povos ao longo do tempo e das experiรชncias histรณricas. Portanto, hรก na poesia um carรกter ancestral e histรณrico que se prolonga no tempo.
Muitas vezes, algumas afirmaรงรตes sobre poesia sรฃo ouvidas entre leitores em geral e entre professores em particular. Duas delas entrarรฃo neste pequeno texto que desde o inรญcio se propรตe a demonstrar que a poesia รฉ um gรชnero literรกrio especรญfico, especial e educacional no sentido amplo: o de servir de mapa e itinerรกrio para as viagens da sensibilidade, da beleza e do conhecimento do mundo.
1. Poesia รฉ difรญcil; por isso tem poucos leitores.
Uma das cantigas de roda mais bonitas de nosso folclore tem versos singelos e emocionantes:
โO anel que tu me deste
era vidro e quebrou.
O amor que tu me tinhas
era pouco e acabouโ.
Trata da comparaรงรฃo entre o vidro e o amor: ambos se quebram, ambos acabam. Mas a beleza estรก tambรฉm nos sons abertos dos versos com as palavrasย anel,ย deste,ย ย amor, tinhasย em contraste com os sons fechados e tristes deย quebrou,ย pouco,ย acabou. A poesia รฉ arte que procura associar o sentido das palavras com seus sons e sua musicalidade. Observar e compreender essa relaรงรฃo vai alรฉm de fazer resumo ou achar a ideia central.
Observe a intensidade que Cecรญlia Meireles sabe provocar ao repetir sons e brincar com a posiรงรฃo das palavras na sensaรงรฃo refrescante e musical de um rio:
โSom
frio.
Rio
sombrio.
O longo som
do rio
frio.
O frio
bom
do longo rio.โ
(MEIRELES. Rio sombrio. In:ย Isso ou aquilo)
As palavras se alongam ou se comprimem ร medida que prevalece a imagem visual/sonora do rio ou seu percurso longo. Os sons agudos da vogalย iย arrepiam o leitor com seu frescor.
O leitor de poesia precisa observar as palavras em sua materialidade, em sua fisicalidade (som, desenho das letras, posiรงรฃo, significados). Talvez esta necessรกria observaรงรฃo e sensibilidade sejam confundidas com dificuldade. Mas sรฃo, na verdade, aprendizagens ย de leituraย capacidades a serem desenvolvidas. ร possรญvel ouvir a poeta Adรฉlia Prado afirmando: โA poesia oferece a realidade e sua beleza. Esta รฉ sua forรงa, seu conforto, sua alegria.โ
2. Poesia serve para falar de amores e dores.
Nem sempre. Josรฉ Paulo Paes brincou com poemas e palavras, com imagens e sons, com assuntos e personagens, sempre descobrindo versos em novas formas:
โComo dizia
aquele bem-te-vi que ficou mรญope:
โBem te via… bem te viaโ (PAES, Correรงรฃo. In:ย ร isso ali!)
Poesia sentimental ou repleta de adjetivos bonitos e vazios, de frases retumbantes ou de rimas forรงadas, de assuntos sempre tratando de amores perdidos รฉ de uma chatice sem fim. O escritor italiano Umberto Eco ironizou esse tipo poema ao afirmar: โTodos os poetas escrevem poesia ruim. Os poetas ruins as publicam, os poetas bons as queimam.โ
De fato, publicar poemas ruins รฉ contradizer toda a beleza da poesia. Aliรกs, a diferenรงa entre os termosย poemaย (um texto em formato de versos e estrofes) eย poesiaย (a arte de extrair das palavras o mรกximo de efeitos e de beleza que surpreendem o leitor por seu ineditismo) jรก indica a diversa qualidade dos textos que se denominam โ muitas vezes de modo imprรณprio โ poesia. Poemas em formato de listas de verbos com rimas repetitivas encontram-se ร s centenas em livros e pรกginas da internet. Algo como:
Luar
brilhar
estelar
pomar.
Distante
bastante
da gente
que sente.
Fica evidente a pobreza vocabular, o nenhum aproveitamento de sentidos de conotaรงรฃo, de relaรงรตes inovadoras entre os versos, as rimas forรงadas e pobres em criaรงรฃo. Listar palavras sรณ porque elas podem ocupar espaรงos de versos nรฃo รฉ construir poesia. ร apenas um equรญvoco textual. Faltam asas de liberdade criadora. O vento nรฃo sopra para movimentar o texto em direรงรฃo aos olhares atentos do leitor.
A poesia รฉ como โA orquรญdeaโ do poeta Elias Josรฉ:
โA orquรญdea
รฉ diferente
รฉ superior.
Jeito de artista
de muita linha,
ela รฉ rainha,
รฉ manequim.
Cheia de fama,
formosa dama,
se esconde
e ninguรฉm vรช.
Nรฃo รฉ flor
de todo dia,
mas irradia
um nรฃo sei
quรช.โ (JOSร, Orquรญdea. In:ย Namorinho de portรฃo.)
A poesia รฉ texto com โjeito artistaโ para leitores com olhos artistas. Ou como definiu Mia Couto, extraordinรกrio escritor contemporรขneo: โA poesia รฉ um modo de abrir portas a essa multidรฃo que foi sendo silenciada dentro de cada um de nรณs.โ. Ela รฉ um convite ao professor: ajude seus alunos a ver com olhos livres e a nรฃo silenciar.
*Marta Morais da Costa, consultora de literatura da Editora Positivo, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela USP. Professora aposentada da UFPR e da PUCPR. Pesquisadora da Cรกtedra de Leitura Unesco-PUC-Rio. Membro da Academia Paranaense de Letras. Autora de Mapa do mundo (2006), Palcos e jornais (2009), Sempreviva (2009) e Hoje tem espetรกculo? Tem, sim, senhor! (2016) entre outros.