Os constituintes durante sua árdua luta para construção da Constituição de 1988, sempre se atentaram para as dificuldades de se viver em um Estado de exceção, por isso, agiram com cautela quando escreveram o texto constitucional, estabelecendo regras de autonomia para os Estados, Distrito Federal e Municípios. Foi o intuito do constituinte estabelecer a regra de liberdade de autodeterminação dos entes federados, sempre levando em consideração suas peculiares e necessidades, sejam elas locais ou estaduais. Por isso, a regra de nossa Constituição é a autonomia, possibilitando que exista vida e ação para os poderes políticos dos entes federados.
Os mesmos constituintes estabeleceram regras de exceção, que deveriam ser usadas de forma pontual, em situações de grave ameaça e de comprometimento da ordem. Tais regras estão presentes no texto constitucional, e uma delas é a intervenção. A intervenção pode ocorrer nos casos do artigo 34 da União intervindo nos Estados e Distrito Federal, e nos casos do artigo 35, em que os Estados poderiam intervir em seus Municípios. As regras para definição de ação das intervenções estão presentes no artigo 36 da Constituição Federal, e são definidas por um decreto, que especificaria a abrangência, prazos e execução da intervenção.
Confesso que durante minha carreira como professor, jamais tratei a intervenção como um tema viável, seja de forma prática e política. Sempre visualizei a intervenção como mais um dos temas que o constituinte inseriu na Constituição, muito mais por medo e preciosismo, do que como algo que presenciaria de fato. Pois, o Governo Temer me provou o contrário. Não só vi o decreto nº 9.288/2018 ser publicado pelo Poder Executivo, como também aprovado pela Câmara dos Deputados, com 340 votos, e no Senado Federal, com 55 votos favoráveis. Uma votação que prova algumas hipóteses sobre a articulação do Governo Temer: (i) que o governo goza de uma maioria razoável no Congresso Nacional; (ii) que a intervenção é mais uma ação política para provar força; e (iii) que a medida favorece grupos políticos para as eleições 2018.
A aprovação do decreto pelo Congresso Nacional não solucionará o problema da segurança pública no Rio de Janeiro, mas acalenta os sonhos políticos das elites estaduais que podem se beneficiar de uma repentina sensação de segurança por parte da população, e ainda por cima, cria a imagem de que o Governo Federal está empenhado em salvar o Estado do Rio de Janeiro. Lembre-se, o Rio de Janeiro é um Estado chave nas articulações políticas para as eleições 2018, e uma pretensa solução do Governo Federal para o problema que mais incomoda a população, é uma excelente saída para grupos políticos que pretendem alcançar o poder. Aliados do Presidente Temer, com pretensões políticas no Rio de Janeiro, tem interesse na intervenção federal, assim como outras elites estaduais que podem verificar em futuras intervenções, uma excelente solução para as dificuldades de seus Estados.
Não faço juízo de valor sobre a decisão de nossos representantes do Poder Legislativo na aprovação da intervenção, mas fico extremamente estarrecido quando observo a passividade das pessoas com a aplicação de uma regra de exceção, que fere a autonomia dos entes federados e que cria certa desconfiança na capacidade de nosso Estado e líderes políticos.
A intervenção federal é o atestado claro de que as coisas não andam bem, é a demonstração de que os administradores públicos estão perdidos e necessitando de uma “ajuda salvadora” de órgãos que não foram desenhados para solucionar seus problemas. Estamos diante de uma das consequências de um Estado desorganizado, de representantes desarticulados e de soluções mágicas que tendem mais a prejudicar do que ajudar.
Sinceramente não acredito que nossos problemas sejam solucionados por um dispositivo constitucional de exceção, que foi inserido como um botão de emergência para ser apertado em último caso. Talvez a intervenção venha a calhar como uma solução meramente paliativa, que vai alterar números superficiais e talvez afastar, por um curto espaço de tempo, pessoas despreparadas do comando da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, resolver o conflito e criar perspectivas para a população, com um plano estruturado de contenção da criminalidade e de desenvolvimento socioeconômico está longe de ser uma realidade.
Quem dera que decretos pudessem solucionar problemas, quem dera que transferir o comando da administração da segurança pública para um terceiro, que não conhece as reais dificuldades do Estado, pudesse causar alento. Não vejo a intervenção como uma saída inteligente, aliás, considero que a mudança de responsabilidade do governo estadual para o governo federal somente vai nos afastar das soluções, assim como fragilizar ainda mais nossas instituições.
*Francis Augusto Goes Ricken, é mestre em Ciência Política, advogado e professor do curso de Direito da Universidade Positivo (UP).
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