Um projeto de lei sugere que as Universidades Pรบblicas nรฃo ofereรงam mais cursos de Humanas – Filosofia, Histรณria, Geografia, Sociologia, Artes e Artes Cรชnicas – afirmando que esses cursos sรฃo โbaratos e facilmente realizรกveis em universidades privadas, presencialmente e ร distรขnciaโ. Diz ainda que “Nรฃo รฉ adequado usar dinheiro pรบblico e espaรงo direcionado a esses cursos, pois o paรญs precisa de mais mรฉdicos e cientistas.โ
Renato Janine Ribeiro, professor titular de รtica e Filosofia Polรญtica da USP, discorda. Para ele, quando da organizaรงรฃo de um curso de Humanidades naquela instituiรงรฃo, afirmou:ย Nem a universidade deve replicar o mercado, nem adianta escolher uma profissรฃo pensando nos excelentes espaรงos de trabalho que ela proporcionarรก. Isso depende tanto de como cada um vai se inventar, no correr de sua vida. (โฆ) O que a Universidade pode fazer รฉ garantir uma formaรงรฃo de uma base sรณlida o bastante para que, em meios ร s mudanรงas, o aluno(a) saiba navegar.ย E conclui: Liรงรตes de moral nรฃo adiantam. Mas conhecimento, sim. ร nele que devemos apostar.
Imaginar que a formaรงรฃo das Humanas atrapalhe o paรญs, gastando recursos escassos sem retorno garantido, รฉ como achar que de nada adianta investir em Saรบde, jรก que todos vamos mesmo morrer. Enquanto estamos vivos, vivemos juntos, em sociedade. E precisamos entender como viver da melhor maneira possรญvel. Por isso, a Filosofia, hรก 2500 anos, auxilia-nos fazendo as perguntas com as quais refletimos sobre essa existรชncia ย frรกgil, sem ensaio ou chance de repetir. Por isso, a Histรณria nos lembra quando, no passado, desastres sociais ou econรดmicos ocorreram, dando-nos a chance de pensar duas vezes antes de agir de maneira semelhante e reencarnar assim uma farsa ou uma tragรฉdia; a Sociologia, por sua vez, explica-nos que as desigualdades que enxergamos em cada esquina nรฃo sรฃo naturais e que podem ser mitigadas com entendimento, consenso e aรงรฃo; a Antropologia avisa-nos que as diferenรงas de cada um de nรณs tambรฉm sรฃo produzidas socialmente e que nรฃo precisam ser barreiras, mas pontes; a Polรญtica explica as formas de dominaรงรฃo, muitas vezes por meio de regras democrรกticas, outras vezes, imposiรงรตes autoritรกrias, e como reconhecer quando รฉ uma e quando รฉ outra.
Somos seres eminentemente sociais e construรญmos formas de convivรชncia e sobrevivรชncia que sรฃo sempre sociais. O indivรญduo que afirmamos ser sรณ existe porque hรก o olhar do outro a nos reconhecer e aceitar. Se tivรฉssemos crescido em uma ilha solitรกria, nรฃo saberรญamos sequer se somos altos ou baixos, gordos ou magros, brancos ou pretos. O olhar do outro nos diz quem somos e a linguagem รฉ a forma de afirmarmos e respondermos a esse contato. O resultado disso รฉ a sociedade que construรญmos. Querer rebaixar a importรขncia de uma formaรงรฃo Humana รฉ nรฃo desejar que possamos nos entender. Talvez aรญ resida a intenรงรฃo da proposta: deixar-nos indefesos e assustados. Quando isso acontece, tornamo-nos violentos e destruidores. Para muitos, essa รฉ a mรบsica que querem ouvir.
Aliรกs, falando em mรบsica: no filme Mr. Holland (Meu Adorรกvel Professor, 1995), o diretor da escola informa ao professor que nรฃo hรก mais verbas para o programa de mรบsica e por isso precisarรก encerrรก-lo. O professor entรฃo responde:ย “faรงa isso! E logo nรฃo haverรก mais fรญsica, nem quรญmica, nem matemรกtica, porque nรฃo haverรก alunos.โ
Mais obtuso ainda รฉ acreditar que as humanas nรฃo servem para o โmercadoโ, para as coisas prรกticas e รบteis e, portanto, as รบnicas que interessam. Lembro-me entรฃo do obituรกrio do economista Alfred Marshall, escrito por John Maynard Keynes, que diz : โO economista excelente deve alcanรงar um elevado padrรฃo em vรกrias รกreas diferentes e combinar talentos que raramente sรฃo encontrados juntos. Deve ser matemรกtico, historiador, estadista, filรณsofo ? em algum grau. Deve entender os sรญmbolos e falar em palavras, contemplar o particular em termos do geral e tocar o abstrato e o concreto no mesmo voo de pensamento. Ele deve estudar o presente ร luz do passado para os propรณsitos do futuro. Nenhuma parte da natureza do homem ou de suas instituiรงรตes deve estar inteiramente fora das suas consideraรงรตesโ.
Ah, vocรช nรฃo sabe quem foram Keynes e Marshall? Nรฃo se preocupe. ร sรณ perguntar para algum bom profissional das Humanas.
*Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica pela UFPR e รฉ professor do Curso Positivo, de Curitiba (PR).