Marcelo Melek*
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviรงo (FGTS) foi criado na Constituiรงรฃo de 1946 como regime alternativo ร estabilidade que os empregados tinham ao completar dez anos de serviรงo ao empregador. Esse regime de estabilidade era muito criticado pela falta de efetividade, porque muitas vezes o empregador nรฃo permitia que o seu empregado completasse os dez anos exigidos, sofrendo a dispensa antes disso. Logo, em vez de ser uma garantia, acabava virando uma penalidade para aquele que estava prestes a completar dez anos de trabalho.
Nesse sistema, havia duas opรงรตes: pertencer ao regime mencionado ou, entรฃo, renunciar ao direito ร estabilidade decenal. No entanto, a Constituiรงรฃo Federal de 1988 elevou o FGTS a um direito fundamental dirigido a todos os empregados, em substituiรงรฃo definitiva e automรกtica da estabilidade decenal. O valor recolhido pelo empregador a tรญtulo de FGTS objetivou formar uma espรฉcie de poupanรงa forรงada a ser entregue ao empregado na dispensa involuntรกria, isto รฉ, quando perdesse seu emprego ou em outras hipรณteses excepcionais estabelecidas na Lei 8.036/90.
O referido fundo รฉ constituรญdo por saldos de contas vinculadas aos trabalhadores e, ainda, de outros recursos incorporados. Os recursos arrecadados se destinam tanto ao trabalhador, no caso de saque, quanto ao desenvolvimento e fomento de programas econรดmicos e sociais promovidos pelo governo. Contudo, algumas situaรงรตes fugiram ao escopo e alcance da previsรฃo legal. A mais relevante delas รฉ quando um empregado, nรฃo tendo mais o desejo de manter-se no trabalho, por diversos motivos, procura seu empregador e propรตe que a empresa o demita para que possa sacar o FGTS e receber o seguro-desemprego, comprometendo-se a devolver a multa de 40% sobre o saldo existente do FGTS.
A empresa resiste a essa proposta, comumente chamada de โacordoโ, jรก que รฉ uma fraude ao sistema do FGTS e ao seguro-desemprego. No entanto, por muitas vezes a recusa da empresa nรฃo รฉ compreendida pelo empregado, e a partir de entรฃo a relaรงรฃo laboral passa a ser conflituosa. O ambiente de trabalho fica comprometido diante desta situaรงรฃo, fazendo com que o empregado deixe de trabalhar de forma adequada e satisfatรณria na esperanรงa de ser dispensado e, assim, finalmente possa se apropriar do dinheiro. Na maioria das vezes, tudo isso รฉ fruto de uma situaรงรฃo de desespero do empregado que necessita urgentemente de dinheiro, pelas mais variadas โ e morais โ razรตes, como para arcar com custos mรฉdico-hospitalares, hipรณteses de saque nรฃo contempladas na lei.
A reforma trabalhista previu a legalizaรงรฃo deste โacordoโ exatamente para evitar essa situaรงรฃo. O artigo 484-A da CLT prevรช que, no caso de mรบtuo acordo na dispensa, o empregado pode sacar atรฉ 80% do valor. Apesar da tentativa de resolver a situaรงรฃo em questรฃo, acredita-se que tal previsรฃo legal nรฃo gerarรก os resultados esperados, seja porque o empregado nรฃo poderรก sacar na รญntegra seu FGTS, seja porque nรฃo estarรก habilitado a receber o seguro-desemprego.
Nesse contexto, surgiu o projeto de lei que permite que o empregado possa sacar integralmente o valor do FGTS depositado em sua conta vinculada no caso de pedir demissรฃo. A Comissรฃo de Assuntos Sociais (CAS) do Senado deu parecer favorรกvel com a aprovaรงรฃo do projeto; se nรฃo houver recurso para o tema ser levado ao plenรกrio da Casa, seguirรก para apreciaรงรฃo pela Cรขmara dos Deputados.
A modificaรงรฃo pretendida pelo projeto resolve em partes a questรฃo do empregado que deseja sair do emprego por sua iniciativa sem prejuรญzo de receber integralmente o FGTS. Teria, assim, maior liberdade e mobilidade na vida laboral. Seria uma saรญda legal para a fraude havida e provocada pelo โacordoโ feito pelas partes. Alรฉm disso, mesmo na hipรณtese de nรฃo querer utilizar o valor do fundo, o beneficiรกrio poderia aplicar esse dinheiro โ o que lhe renderia muito mais do que comparado com o rendimento dado pelo sistema do FGTS.
Mas, como direito fundamental e de carรกter indisponรญvel ao empregado โ isto รฉ, direito de que o empregado nรฃo pode abrir mรฃo โ, seria desejรกvel ou possรญvel antecipar a movimentaรงรฃo do valor? Nรฃo hรก predomรญnio, no Brasil, de cultura efetiva de educaรงรฃo financeira ou planejamento financeiro de mรฉdio e longo prazo; as pessoas poderiam ser levadas a gastar todo o dinheiro que, mais tarde, poderia ser utilizado com a finalidade concebida pelo FGTS. O?trabalhador ainda poderia, em caso de desespero ou como forma mais fรกcil de obtenรงรฃo de dinheiro, preferir o desemprego para ter dinheiro disponรญvel, o que levaria a uma situaรงรฃo precรกria e perigosa no atual cenรกrio de desemprego e crise econรดmica.
Outra questรฃo que merece indagaรงรฃo รฉ se o sistema do FGTS estaria preparado para nรฃo contar com esses valores, tendo em vista que, enquanto estiverem depositados, sรฃo utilizados para programas sociais e de desenvolvimento econรดmico do paรญs, o que na prรกtica representa uma diminuiรงรฃo da receita do Estado.
Sob a perspectiva econรดmica, a medida cai bem e em boa hora, pois mais pessoas com mais dinheiro para gastar poderiam animar o mercado, ainda que esse รขnimo seja artificial e provocado pela utilizaรงรฃo de โpoupanรงaโ. Superadas todas essas questรตes, deve-se reconhecer que o projeto de lei em questรฃo รฉ benรฉfico para o empregado em um primeiro momento e no curto prazo, mas no mรฉdio e longo prazo o prรณprio trabalhador poderรก sofrer com as consequรชncias de sua escolha. Espera-se que seja a mais adequada e sensata possรญvel.
*Marcelo Melek, รฉ pรณs-doutorando em Direito, mestre em Educaรงรฃo e professor do curso de Direito da Universidade Positivo (UP).