Uma estrofe de um poema popular italiano diz: โtrรชs anos vive um arbusto, trรชs arbustos um cachorro, trรชs cachorros um cavalo, trรชs cavalos um homem. E feliz de quem enterra os dois primeiros”. Se pensarmos nos que nem chegaram a sonhar uma vida de adultos; e pensar nos que, adultos, nรฃo conseguiram fazer planos de maturidade, seja por doenรงa, seja por maldade. O mundo รฉ mesmo cheio de histรณria interrompidas. Caixรตes brancos ou de madeira clara, pais chorando uma morte nunca planejada; adultos com vergonha e inveja por estarem de pรฉ, vertendo lรกgrimas pelos que se foram antes de sequer deixarem marcas pelo caminho.
Depois que se passa do segundo cavalo, sabemos que cada ano รฉ um desafio sem lรณgica. O cavalo que agora se vive tem saรบde instรกvel e desejos intensos. Sabemos o quanto desperdiรงamos a histรณria dos dois primeiros: excessos e faltas, intensidade e um tanto de cabeรงadas; corridas ensandecidas e morosidade excessivas. E, quando, mesmo assim, alcanรงamos essa terceira chance de viver um ciclo, perguntamo-nos onde estรกvamos que nรฃo planejamos viver esse cavalo depois dos cavalos que largamos indolentemente pela estrada. Hรก tanta estupidez prazerosa na juventude e hรก tanto arrependimento inรบtil na maturidade!
E entรฃo – como se fosse รณbvio – cavalo a cavalo, acreditamos tornamo-nos sรกbios. Agora รฉ sรณ trotes regulares, alfafa (orgรขnica) e terrenos planos. Como se nossa moderaรงรฃo implicasse um mundo melhor, quando – admitamos – รฉ somente angรบstia e medo de jogar fora o tempo que antes era moeda podre. Mas chamamos “experiรชncia” e, muitas vezes, cobramos atenรงรฃo dos cavalos jovens e inquietos. Ah, convenhamos: รฉ sรณ inveja, รฉ sรณ saudade! Queremos mesmo รฉ dizer โcorramโ, โdesembestemโ, โnรฃo se contenhamโ, haverรก tempo para a moderaรงรฃo. Mas agora esse tempo รฉ ouro e tememos atรฉ mesmo respirar mais forte. E, por isso, nรฃo dizemos nada disso a eles. E por isso tornamo-nos inconvenientes, conservadores, buscando manter o que lamentamos ser o que nos resta depois de tanto tempo largado, desperdiรงado. Em vรฃo.
Depois de tanto tempo na funรงรฃo de ensinador – trinta e cinco anos – tremo quando meus jovens alunos dizem que pretendem fazer algo de importante porque esse รฉ o sonho importante de seus pais. Nรฃo quero ser um elemento de inquietaรงรฃo familiar, mas tento, perpendicularmente, intervir: โmas esse sonho nรฃo รฉ deles?โ E nรฃo รฉ um sonho de um tempo da juventude que eles viveram e deixaram virar nada? “Por que agora querem respirar o ar que vocรชs respiram?โ โPor que agora querem que vocรชs abandonem os prados verdes por รกrvores que jรก nรฃo dรฃo mais frutos?โ.
Missรฃo difรญcil essa de ser uma sombra longa na estrada poeirenta, tentando alcanรงar as jovens almas que nรฃo enxergam o horizonte – que nunca estรก em nenhum lugar – e que, por isso, acreditam que hรก ali um ponto de chegada. O terceiro cavalo, olhando triste para os jovens potros, pensa em lhes dizer algo. Mas para quรช? Para alertรก-los de que a fome de viver รฉ efรชmera? Para lembrรก-los que tudo acaba? E com que propรณsito? O terceiro cavalo, penso eu que nele cavalgo, precisa รฉ ter a serenidade de caminhar largo e compassado e sorrir seus dentes amarelos para os apressados cavalos de primeira viagem, abrindo-lhes espaรงo e desejando-lhe uma viagem grata, sem julgar ou desdenhar, mas, quando muito, mostrar uma vereda ou uma colina de sombra ou vale de รกgua fresca. A educaรงรฃo nรฃo รฉ um progresso, mas uma heranรงa. Nรฃo um lugar aonde chegar, um objetivo que estรก no futuro, mas um sentido que pode ser partilhado, que transcende tempos e espaรงos: o de dividir sorrisos e afetos, novos e veteranos, chegados e partintes.
Um cavalo velho nรฃo tem liรงรตes para ensinar. Apenas histรณrias para compartir. E o mais importante: quando chegamos ao terceiro ciclo de nossa vida tรฃo pequena nesse tempo que รฉ do mundo, nรฃo ficamos para trรกs dos que chegam agora. Somos contemporรขneos de jornada. Eles com fogo nos olhos, nรณs com รกgua; eles com vigor, nรณs com ritmo; eles com pressa e nรณs sem hora; eles com esperanรงa e nรณs com notรญcias; eles com fome e nรณs com comida. Se der sorte, hรก sempre a chance de um encontro no qual todos saiam felizes, encantados com a proeza da vida, que nรฃo espera mas nรฃo separa e sempre aposta no momento, a รบnica unidade de tempo que existe. Os resultados serรฃo, sempre, memรณrias. Que todos tenham as suas. E que sejam doces.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica pela UFPR e professor no Curso Positivo.