Quando eu nasci, ter a idade que tenho agora – 55 anos – era jรก ser velho. No Impรฉrio Romano, vivia-se, em mรฉdia, 30 anos. Quando aprendi sobre isso na escola, eu tinha por volta de 15 anos e pensava que, se fosse comigo, viveria ainda mais uma outra metade de vida. Mas a Ciรชncia desfez minhas ilusรตes de chegar aos 30 e morrer de velho. Hoje, se digo a alguรฉm que sou velho, sou repreendido, como se eu tivesse dito algo muito errado, algo como um โpra mim fazerโ. Na Itรกlia, aumentaram a idade para dizer que alguรฉm รฉ velho. Pra ser velho por lรก, tem de ralar mais. No Japรฃo, ou em alguma parte do Japรฃo, muitas pessoas passam dos 100. Haja esforรงo pra tudo isso.
Acompanho jovens hรก muitos anos, desde quando eu mesmo era apenas um pouco menos jovem do que eles. E uma das coisas que sempre me chamou a atenรงรฃo รฉ como o tempo รฉ um enorme tormento para eles. Os dias sรฃo longuรญssimos, as manhรฃs comeรงam muito cedo e nรฃo acabam nunca, as tardes sรฃo cheias de sono e as noites repletas de limitaรงรตes. Sempre que podem, o que รฉ quase sempre,ย eles, os jovens, estรฃo cansados e sonolentos. Nas filas dos aeroportos, enquanto em geral os mais velhos enfrentam resignados as longas e interminรกveis filas, os jovens se esponjam pelo chรฃo, os olhares esgazeados como se estivessem sem ar. Vivem a exata experiรชncia da materializaรงรฃo do tempo, o lento e incessante passar de sua procissรฃo de segundos, minutos, horas.
E como nossas convenรงรตes atribuem pouco valor de decisรฃo aos jovens e hรก uma sรฉrie de vedaรงรตes legais, sรณ o tempo – esse algoz – pode libertรก-los para a vida adulta. E, no entanto, quando ela chega, traz consigo, quase sempre, por causa do trabalho, da famรญlia, dos impostos, o sequestro desse mesmo tempo antes tรฃo abundante โ e o fardo รฉ repaginado, agora com as cores do relรณgio de ponto. E passamos entรฃo o tempo todo sonhando com o tempo em que nรฃo teremos nada para fazer, como quando se era jovem, sรณ que agora com a compreensรฃo de que aquele tempo todo era ouro puro e trocamos por balinhas de menta. Como diria o Pessoa , “raiva de nรฃo ter trazido o passado roubado na algibeira!โ
Outra coisa ainda รฉ o tempo do desemprego, o tempo da doenรงa, ou da dor. Esse tempo traz consigo o desejo de nรฃo existir, de que tudo se extingua. E quando ele passa, a volta da rotina รฉ tola e alegremente comemorada. Atรฉ que ela, por sua vez, vire rotina de novo. E, mais uma vez, queremos que passe, passe. E quando passa, queremos que pare, pare, como um delรญrio, uma fome que nรฃo hรก comida que cesse.
O tempo รฉ tรฃo igual, monocรณrdio, que marcamos, ao longo dele, alguns momentos para lembrarmos que estamos aqui, existimos, temos alguma concretude. ร o que chamamos de eventos: o aniversรกrio, o fim do ano, as bodas de amor ou de trabalho, a data da viagem que queremos inesquecรญvel. Nessas datas, declaramos uma espรฉcie de grito de guerra contra a pasmaceira do tempo, sua insensibilidade com o fato de que somos nรณs que fazemos as coisas acontecerem, caramba! Dizemos: hoje รฉ um grande dia. Hoje รฉ uma data รบnica! O tempo, bom, o tempo nem olha ou se importa com esse barulho todo, nรฃo se apressa, nem se atrasa. Segue, segue, sem rumo ou propรณsito.
Herรกclito, que jรก entre os gregos era conhecido como โo obscuroโ, dizia que tudo รฉ mudanรงa. โSรณ hรก o devirโ. Tudo flui. E รฉ sรณ isso. Sem objetivos ou finalidades. Como estar sobre a corda bamba. Se vocรช conseguir se equilibrar, fica feliz, entusiasmado. Atรฉ perceber que รฉ sรณ isso. Nรฃo hรก mais nada para fazer ali. E o precรกrio equilรญbrio torna-se a melhor situaรงรฃo quando a outra alternativa รฉ cair da corda.
Por isso, talvez, os antigos afirmassem que o que hรก para fazer no tempo รฉ realizar feitos para que seu nome nรฃo seja esquecido. Nรฃo รฉ possรญvel parar o passar dos anos, mas รฉ possรญvel imprimir nele marcas reconhecรญveis pelos que virรฃo. Tipo dar um duplo mortal carpado sobre a corda bamba e ficar ali, congelado com um sorriso no rosto para a foto que restarรก. ร o que se chamava de โglรณriaโ. Para os que nรฃo a conseguiam, a morte nรฃo era o pior: o pior era o esquecimento. O corpo, desfeito no Letes, liquefeito, liquidado. O inferno para os antigos nรฃo era arder, ela dissipar-se na memรณria dos vivos.
Penso que devo o fato de estar vivo – apesar de velho –ย ao que outras pessoas fizeram no mundo nesse tempo todo. Melhoraram a qualidade das รกguas, dos alimentos, dos remรฉdios, do trabalho, das condiรงรตes gerais de vida. Remando contra a marรฉ nostรกlgica, aceito o que afirma Steven Pinker: vivemos o melhor dos tempos. Nรฃo me imagino sem a anestesia, antibiรณtico, ar condicionado, sem o elevador, sem o zรญper ou o Band-Aid, sem o FaceTime ou as entregas de comida em casa. Por isso, creio que meu tempo extra deve-se a estas pessoas e busco encontrar formas de compensรก-las, tentando ser uma pessoa com alguma contribuiรงรฃo pรบblica minimamente relevante.
Acredito que os gregos, quando falavam em glรณria, imaginavam algo assim. Para fazer valer esse tempo todo que a gente passa por aqui, na maior parte tempo sem utilidade ou graรงa, tem de realizar algo inesquecรญvel. Como lembrou a mulher de Leรดnidas, antes dele enfrentar os persas em Termรณpilas, ao lhe entregar o escudo com o sรญmbolo de Esparta: โvolte com ele ou sobre eleโ.
ร isso. A vida รฉ esse mar de tempo e umas pequeninas ilhas de glรณria espalhadas. A vida vale a pena para quem chegar no maior nรบmero dessas ilhotas e deixar algo lรก que torne a vida do prรณximo melhor e mais fรกcil. Algo que faรงa com que lembrem sempre o quanto o tempo seria ainda mais longo, cansativo e doloroso se nรฃo fosse a dedicaรงรฃo dessas pessoas.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica pela UFPR, consultor, palestrante e professor de Histรณria e Filosofia no Curso Positivo.