Mesmo em um tempo que desperta a solidariedade de muitos, como o atual em plena pandemia, com as dificuldades econômicas que todos sabem que se avizinham, ainda não deixamos de ter atos de agressões – mulheres confinadas com maridos agressivos, crianças expostas a violências de todas as ordens, grupos que tentam efetuar roubos fantasiados de agentes de saúde, e todas as mazelas que sempre enfrentamos em épocas ditas “normais”.
Obstáculos como doenças globais, perspectivas de desabastecimentos, ruínas financeiras e famílias sem poder alimentar-se ainda não foram suficientes para criar empatia e generosidade em toda a sociedade, embora estejamos – aparentemente – caminhando para uma melhor compreensão do Outro e suas necessidades. Mas isso depende, infelizmente, de uma questão de educação (no seu sentido mais amplo) a que uma comunidade tenha tido acesso.
Exemplos de dirigentes desnecessariamente agressivos, em eterno confronto, desautorizando auxiliares que dizem verdades – evidentemente nem toda verdade é confortável – com desprezo pela ciência e escolas de forma geral, são também contraproducentes numa sociedade que já não prima pelo acesso a educação de boa qualidade para a maior parte de sua população.
E um dos agravantes atuais está manifesto no fato comprovado de que em todo agrupamento em que a família está desestruturada ou a escola não é corretamente valorizada, a delinquência se torna tutora do desenvolvimento.
E são as potencialmente melhores crianças, aquelas mais espertas e resilientes que se constituirão mais rapidamente nos “melhores” infratores, ou seja, as mais bagunceiras, violentas, que tenderão a “tomar” o que não é seu, pela agressividade ou mesmo o roubo. Crianças mais doces, mais compreensivas, mais tolerantes no comportamento serão agredidas e perderão espaço de manifestação, e muitas vezes pais e professores assistem a este processo sem uma interferência decisiva.
Ao longo de toda a história humana atos considerados violentos e agressivos foram cometidos, deles temos relatos na Bíblia e em tratados de Filosofia Clássica, tendo Freud tratado do assunto ao discutir a civilização com seus atos considerados mais selvagens.
Como hoje as informações circulam com mais rapidez, o clima é de desorientação e ansiedade, com a consequente decadência da força normativa das instituições e descrédito no poder simbólico da lei. Se dirigentes que deveriam nortear nossas ações e comportamentos parecem, eles mesmos, incapazes de autocontrole, de contenção, de discernimento, são as pessoas com maior fragilidade no processo educativo que se sentirão mais autorizadas ao destempero.
Perdemos, por isso, o sentido de responsabilidade e pertencimento social, descrendo do Estado, da família e das escolas. Valores e relacionamentos se tornam “líquidos”, trazendo insegurança e descrença no futuro, e se desconhecermos o passado, a história da civilização e da construção da cidadania, somos levados a um eterno presente, sem valores ou referências, no qual o prazer imediato é a única norma.
Solidariedade desaparece quando os demais deixam de serem humanos, tendo apenas a função de espelho, que repete todas as minhas opiniões e comportamentos, ou então de oponente, que não compartilha minhas ideias e por isso se torna alvo de destrutividade, ou até um mero objeto, do qual extraio meu prazer, mesmo que isso signifique sua dor.
A transgressão de regras, das leis ou das normas comunitárias leva à violência, aos atos de abuso, mostrando que o mito do brasileiro cordial, isento de preconceitos não existe, e a percepção desta realidade é urgente, caso queiramos melhorar esta realidade. Em um momento em que pessoas estão confinadas com aqueles em situação de fragilidade, cuidar da família é bem mais que simplesmente orientar a cor da roupa que devemos usar.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.
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