*Daniel Medeiros
No dia 6 de julho de 1942, Anne Frank e sua famรญlia esconderam-se dos nazistas nos fundos de uma fรกbrica em Amsterdรฃ. Ficaram escondidos atรฉ serem delatados e descobertos, em 4 de agosto de 1944. Anne tinha quinze anos quando foi presa e deportada para um campo de concentraรงรฃo, onde morreu.
Muita gente conhece Anne Frank por causa do diรกrio que ela deixou, relatando o cotidiano do refรบgio e a convivรชncia com sua irmรฃ, pais e membros de duas outras famรญlias que dividiam as agruras do confinamento e o temor constante de serem descobertas. Anne descreve sobre esses longos dias, meses, anos, e tambรฉm reflete, imagina, sonha. ร o retrato de uma jovem inteligente em uma situaรงรฃo absurda. Marcada por vรกrias dรบvidas, angรบstias, momentos de raiva e incompreensรฃo, mas, principalmente, pela certeza de que tudo continuaria: a escola, as amizades, o futuro, uma profissรฃo. O confinamento era apenas um momento ruim na vida da jovem e de sua famรญlia. Mas, infelizmente, nรฃo foi assim. Apenas o pai, Otto, sobreviveu aos campos. E foi ele o responsรกvel pela publicaรงรฃo dos diรกrios da filha, em 1947.
Muitas histรณrias com a de Anne e sua famรญlia ocorreram na Europa durante o horror fascista. Mas tambรฉm, e certamente, em muitos outros regimes autoritรกrios que escolheram etnias, religiรตes ou ideologias como inimigos e os perseguiram. Lembro-me, por exemplo, de um documentรกrio de 2014, chamado โA Imagem que faltaโ. Nele, o diretor, Rithy Phan busca relatar suas memรณrias e, por meio delas, trazer seu testemunho sobre o que aconteceu com seu paรญs, o Camboja. Ele tinha 13 anos quando Pol Pot chegou ao poder, iniciando um perรญodo de terror que deixou poucas imagens mas muitos traumas. Rithy Phan se vale de bonecos de massinha para reencarnar suas memรณrias, permitindo ao pรบblico ver atravรฉs, imaginar, e nรฃo apenas chocar-se com a realidade terrรญvel vivida pelo povo cambojano.
Um artifรญcio que o escritor Jorge Semprun, outro sobrevivente dos campos nazistas, traduziu da seguinte maneira: “hรก histรณrias que nรฃo sรฃo apenas difรญceis de contar. Sรฃo difรญceis de se acreditar que puderam ser vividas”. Nesse caso, a arte assume um papel fundamental, ao permitir um acesso mais profundo da memรณria e um sentimento que capta mais amplamente o que de fato foi vivido, por mais inacreditรกvel que seja.
A obra de Anne Frank tornou-se um fenรดmeno mundial e tambรฉm ganhou as telas dos cinemas. Um curioso sucesso que sรณ se explica pela nossa capacidade de vivermos a dor dos outros, esse sentimento que Rousseau identificava nos homens desde o estado de natureza: a compaixรฃo.
Em todas as situaรงรตes nas quais nossa liberdade รฉ obstada, hรก sofrimento e, ao mesmo tempo, solidariedade. Dois fenรดmenos siameses, tรฃo prรณprios de nรณs, embora quase sempre a dor รฉ tambรฉm causada por pessoas como nรณs. E aรญ que vem a perplexidade: por que hรก tantas pessoas que estabelecem como visรฃo utรณpica um lugar despovoado da diferenรงa? Essa atraรงรฃo pelo que parece o mesmo, pelo que jรก se conhece, pelo que nรฃo traz surpresas, estรก entranhado em nosso espรญrito humano tanto quanto a comiseraรงรฃo, a empatia, o reconhecimento da diferenรงa. E a Histรณria vai registrando esse balanรงo de dor e esperanรงa, de violรชncia extrema e anulaรงรฃo do outro e atitudes herรณicas, desprendidas, captadas pela arte de um diรกrio, pela lente e imaginaรงรฃo de um sobrevivente.
Creio que nรฃo mudaremos como espรฉcie, mas podemos aprender como indivรญduos e ensinar os outros. Pois cada esconderijo, cada fuga, cada pavor diante de outro ser humano que quer nos ver mortos porque somos diferentes, agimos diferente ou pensamos diferente, รฉ uma vitรณria da caverna e dos que projetam sombras em seu fundo.
*Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.