*Fernando Menegat
Os setores econรดmicos mais densamente regulados (รกgua, energias, minรฉrios, transportes, telecomunicaรงรตes etc.) potencializam uma realidade infelizmente ainda muito comum no Direito brasileiro: o imenso distanciamento entre a prรกtica e o ensino jurรญdico.
Do lado do ensino jurรญdico, hรก completa ausรชncia de enfoque ao Direito Regulatรณrio nas matrizes curriculares dos cursos de Direito, o que se alia ร falta de centros jurรญdicos especializados no estudo do fenรดmeno regulatรณrio no Brasil โ salvo raras (e elogiรกveis) exceรงรตes. Como consequรชncia, o estudo da regulaรงรฃo jurรญdica vai se desenvolvendo, por comodismo, a partir de bases e conceitos conhecidos e confortรกveis ao estudioso. ร o Direito Administrativo โGeralโ (como classificam os alemรฃes) aplicado a fรณrceps para tratar dos fenรดmenos da regulaรงรฃo de setores econรดmicos infraestruturais. Resultado disso รฉ a construรงรฃo exageradamente academicista, sem qualquer viรฉs pragmรกtico, de anรกlises, conceitos e princรญpios desconectados da realidade dos setores regulados, de diminuta operatividade. Nรณs administrativistas costumamos cair nessa armadilha de maneira automรกtica, desapercebida. ร um vรญcio padrรฃo de comportamento, difรญcil de lidar.
De outro lado, na vertente da prรกtica, o operador do direito โ com escassa oportunidade de se dedicar ao estudo do Direito Regulatรณrio antes de atuar no setor โ se vรช abruptamente fagocitado por uma realidade em que siglas pululam aos montes, formando sopas de letrinhas que o organismo precisa se acostumar a digerir. Num movimento que Niklas Luhmann teria prazer em descrever, cada setor regulado vai formando seu cรณdigo, sua linguagem personalรญssima, e consolida seu โordenamento setorialโ (Santi Romano). As siglas desempenham aqui um importante papel: demonstrar quem รฉย insiderย e quem รฉย outsider,ย dificultar o debate e, em รบltima medida, consagrar a autopoiese do sistema. Tomando o exemplo do setor elรฉtrico, uma rรกpida conversa com qualquer operador demonstrarรก o que aqui se afirma. Se indagado quais os maiores pontos de inflexรฃo do setor no futuro prรณximo, a resposta virรก em siglas: GD, GSF, MCP, ONS… No intestino dos setores regulados, o Direito Administrativo รฉ desarticulado e se lhe trocam os pรฉs pelas mรฃos: Resoluรงรตes e Portarias sรฃo louvadas comย statusย de norma fundamental, a Constituiรงรฃo por vezes รฉ mero detalhe.
Como รฉ evidente, esse distanciamento entre teoria e prรกtica promove graves distorรงรตes, que se tornam extremamente visรญveis em momentos de inflexรฃo regulatรณria. Um exemplo o atesta.
Dia desses participei de evento em que se discutiu a famigerada alteraรงรฃo na Resoluรงรฃo 482/2012 da ANEEL โ tema que jรก tem se tornado recorrente nos atualmente monotemรกticos eventos de Direito da Energia. A Resoluรงรฃo trata da microgeraรงรฃo e minigeraรงรฃo distribuรญda de eletricidade (para os รญntimos, a โGDโ), รฉ prรณdiga em auferir crรฉditos de compensaรงรฃo aos produtores (โprosumidoresโ) de energia que se enquadram em seus termos, e estรก em vias de ser revista pela Agรชncia para equalizar alguns encargos que tรชm sido mal redistribuรญdos no setor. Pelas tantas, sobreveio afirmaรงรฃo em tom de fim de argumento:ย Mas e o direito adquirido ร imutabilidade do regime jurรญdico?ย Presumo que a indagaรงรฃo tenha provindo de partidรกrio da vertente acadรชmica (caso contrรกrio, atuantes do setor teriam indagado โmas e o DARJ?โ).
Questionamentos como esse demonstram a craquelagem hoje existente entre teoria e prรกtica no setor. Quando uma premissa fundamental da atividade regulatรณria (a da natural flexibilidade do regime regulatรณrio para se ajustar ร natural evoluรงรฃo econรดmica da atividade regulada โ sobretudo com o avanรงo galopante das tecnologias) รฉ questionada com argumentos abstratos num tom de โsuper trunfoโ, algo tem de estar errado. ร claro que nรฃo se estรก aqui defendendo, no extremo, a ausรชncia de estabilidade e seguranรงa jurรญdica nos setores regulados โ alegรก-lo seria ignorar a Constituiรงรฃo e grandes avanรงos legislativos como a Nova LINDB e a Lei Geral das Agรชncias Reguladoras, plenamente aplicรกveis ร atividade regulatรณria. Mas entre direito ร estabilidade e direito ร imutabilidade da regulaรงรฃo o passo รฉ bastante largo.
Nรฃo hรก razรฃo para aprofundar esse ponto nesse momento. O exemplo foi usado apenas para demonstrar como รฉ urgente a necessidade de conectar teoria e prรกtica nos setores regulados. Enquanto os teรณricos do Direito Administrativo ignorarem a prรกtica e os prรกticos ignorarem o Direito Administrativo, pouco se avanรงarรก. Para superar o estรกgio de letargia entre o academicismo e a tara pelas siglas, รฉ preciso mudar ASAP.
*Fernando Menegat รฉ doutorando em Direito Administrativo pela USP e advogado em Curitiba (PR). ร Professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo.