Josรฉ Pio Martins
Em 2003, escrevi um artigo com tรญtulo similar a este, citando algumas notรญcias sobre sรฉrias distorรงรตes no gasto pรบblico brasileiro. A primeira, no dia 12 de agosto de 2003, dizia: โNa Assemblรฉia Legislativa de Minas Gerais hรก servidores com salรกrios de atรฉ R$ 50 mil/mรชsโ. A inflaรงรฃo acumulada desde entรฃo anda nos 200%; logo, aqueles R$ 50 mil valem atualmente R$ 150 mil. No dia anterior, o Jornal Nacional havia entrevistado uma operรกria da lavoura de sisal no Nordeste; ela disse: โNunca ganhei tanto na lavoura como agora. Chego a tirar R$ 22 por semanaโ. Essa operรกria ganhava perto de R$ 100 por mรชs.
Poucos dias antes, a imprensa havia mostrado uma tal โlista das vovรณs marajรกsโ, mulheres que recebiam R$ 53 mil ou mais por mรชs como pensรฃo por morte de seus maridos militares. Fazendo a conta, naquele ano de 2003 a pensรฃo mensal da viรบva de um militar, ou o salรกrio de um servidor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, era maior que 44 anos do salรกrio da mulher operรกria na lavoura de sisal. A pensรฃo das viรบvas e os salรกrios dos servidores da Assembleia mineira (aqueles relacionados, รฉ claro) representavam uma grave distorรงรฃo, da qual a maioria absoluta dos servidores nรฃo se beneficiava. Era uma distorรงรฃo a favor de uns poucos.
Na รฉpoca, o presidente Fernando Henrique Cardoso disse que โo Brasil nรฃo รฉ um paรญs pobre, รฉ um paรญs injustoโ. Ele acertou ao dizer que รฉ injusto, mas errou ao dizer que nรฃo รฉ pobre. O Brasil รฉ pobre e injusto, as duas coisas. Aquela indecรชncia nรฃo era obra de um governo especรญfico. Eram distorรงรตes de dรฉcadas, que adentraram certas repartiรงรตes e corporaรงรตes estatais, e beneficiavam uns poucos, protegidos por leis imorais. Nรฃo รฉ por acaso que o Instituto de Pesquisa Econรดmica Aplicada (Ipea), รณrgรฃo do governo federal, afirma que o gasto pรบblico รฉ a maior esteira de concentraรงรฃo de renda no paรญs.
Naquele mesmo ano, iniciando seu primeiro mandato, Lula disse que iria โpeitarโ os funcionรกrios pรบblicos, pois, entre os 3,5 milhรตes de servidores, apenas 1 milhรฃo deles, 28,6% do total, ganhavam acima do teto do INSS, que era de R$ 2,4 mil por mรชs (R$ 7,2 mil em valores de hoje). Portanto, 71,4% dos servidores pรบblicos recebiam salรกrios no mรกximo iguais ao teto do INSS; logo, continuariam recebendo aposentadoria integral, paga pelo Tesouro. Os demais funcionรกrios, 28,6% do total, com ganhos acima do teto, deveriam contribuir para um fundo de previdรชncia complementar.
O teto do INSS hoje รฉ de R$ 5.839,45; portanto, nรฃo chega aos R$ 7,2 mil (aqueles R$ 2,4 mil de 2003 trazidos atรฉ hoje pela inflaรงรฃo). Lula enxergou aquela injustiรงa e prometeu aos operรกrios do Nordeste que ficaria ao lado deles e iria mudar โtudo que aรญ estรกโ. Entรฃo, seu governo propรดs, entre outras mudanรงas na Previdรชncia, que os servidores trabalhassem atรฉ os 60 anos no caso de homens, e atรฉ os 55 anos no caso de mulheres, para terem direito ร aposentadoria igual ao salรกrio integral quando na ativa.
Mas a reforma de Lula parou no meio do caminho e nรฃo se falou mais nos servidores da Assembleia mineira, nem nas โvovรณs marajรกsโ, nem na operรกria da lavoura de sisal. Justiรงa seja feita: aquelas manchetes mostravam o descalabro na polรญtica de remuneraรงรฃo no setor estatal, onde uma multidรฃo de servidores ganha mal, e uma pequena parcela ganha fortunas. Tambรฉm รฉ preciso dizer que a lei do teto salarial no governo, hoje de R$ 39,2 mil, conseguiu cortar valores excedentes para muitos servidores.
Essas notรญcias sobre distorรงรตes em salรกrios, aposentadorias e pensรตes โ que certamente nรฃo tรชm o apoio da maioria dos funcionรกrios pรบblicos โ fazem lembrar o desabafo de um grande brasileiro: Eugรชnio Gudin โ engenheiro, economista, ministro da Fazenda no governo Cafรฉ Filho (1954-1955), professor e autor de cinco livros sobre economia โ, um defensor da liberalizaรงรฃo da economia e inserรงรฃo do Brasil no mercado internacional, que, desiludido com a insistรชncia do paรญs em se isolar em um nacionalismo atrasado, fez o seguinte desabafo: โO Brasil foi a amante que mais amei, e a que mais me corneou. Tendo tudo para ser rico, insiste em se manter no pobrezaโ.
Eugรชnio Gudin teve o privilรฉgio de viver 100 anos, de julho de 1886 a outubro de 1986, mas nรฃo teve o privilรฉgio de ver o paรญs se desenvolver. Pelo contrรกrio: ele morreu oito meses apรณs a implantaรงรฃo do Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, e pรดde assistir ao espetรกculo fracassado do congelamento de preรงos, salรกrios e cรขmbio, numa tentativa de debelar a hiperinflaรงรฃo.
Passados 33 anos desde a morte de Gudin, aquela amante infiel tornou-se tambรฉm cara e ingrata. Alรฉm de usar o dinheiro do povo para beneficiar alguns, num mar de distorรงรตes, privilรฉgios e corrupรงรฃo, essa amante toma muito dinheiro de quem a sustenta, em forma de uma carga tributรกria elevada, e proporciona poucos prazeres, em forma de serviรงos pรบblicos de baixa qualidade. E hoje, dado o tamanho da pobreza e o elevado desemprego, muitos ainda morrerรฃo como Gudin, sem ver nosso paรญs ingressar no clube dos desenvolvidos.
*Josรฉ Pio Martins, economista, รฉ reitor da Universidade Positivo.