No mundo anterior à pandemia a coletividade e a solidariedade vinham sendo substituídas paulatinamente pelo indivíduo e suas opiniões, num desprezo absoluto pela ciência e a comunidade.
A psicologia social analisa bem como nossa tendência a formar noções simplificadas para entendermos e sobrevivermos às complexidades da vida real que aos poucos se tornam imunes às contradições, passam a ignorar as exceções e rejeitam inclusive a própria experiência.
Simplificar torna o ambiente reconhecível, elimina pormenores e assim nos permite adotar acriticamente as normas e valores vigentes, mas traz como consequência o medo do conhecimento.
Atribuir à autoridade constituída o ato de pensar, faz odiar os que pensam por si, ou seja, duvidam das atitudes e comportamentos que estão fundados no estereótipo, nas explicações dadas pelos “guias”, eliminam a necessidade de manter viva a percepção.
Toda criança é dependente do consenso de seus pais, tutores ou mesmo professores, e inicia sua vida em acordo com as exigências impostas dentro de seu círculo mais restrito, de onde extrai segurança, alimentos e os valores que nortearão sua vida futura. Estas instituições que nos socializam são, portanto, responsáveis pelas crenças que temos, e a insubmissão vai exigir maturidade, reorientação intelectual, uma certa ruptura de vínculos sociais primários, para reafirmar sua autonomia e autodeterminação.
Muito de nós não atingimos esta etapa, permanecendo presos a velhos dogmas, às determinações de “gurus” e figuras de autoridade, e mesmo aos comportamentos aprendidos, que necessitariam para serem mantidos: reflexão e afastamento dos conceitos pré-determinados, ou seja, deveriam ser assumidos somente após o crivo da cognição.
Teremos que mudar muitas opiniões e comportamentos em função da crise atual, tanto na vida pessoal quanto na comunitária, pois os valores entram em questão, não apenas nos aspectos de preservação de saúde, mas também no tipo de organização política e econômica que vínhamos assumindo. Consumismo, participação social, empatia, solidariedade e o exato valor de nossas atividades econômicas são discutidos com um pouco mais de profundidade, até pela possibilidade de que esta etapa seja apenas o prenuncio de outras ainda mais problemáticas.
O fato de que, por exemplo, o meio ambiente seria um fator de impedimento ao crescimento desenfreado da exploração comercial de vários setores, como se o planeta fosse inesgotável e seus recursos fossem infinitos, colocando o crescimento econômico acima de tudo, e os interesses de certos grupos acima de todos, nunca esteve tão claramente exposto para uma grande massa populacional.
Dividimos um planeta em que organismos minúsculos e invisíveis aos nossos olhos podem alterar significativamente nossas vidas, possivelmente em função de fomes e misérias que permitimos bem longe de nossos olhos, como se bastasse não ver para que não pudessem nos prejudicar. Ainda assim, estamos levando à extinção milhares de ouras formas animais sem muita reflexão, como se não fossem portadores de vírus e bactérias que precisarão de outros hospedeiros para sobreviver.
Nossa convivência com os vírus é uma narrativa não apenas genética, mas também histórica e mesmo antropológica; diferentes microrganismos são encontrados ao longo de todo nosso processo civilizacional, e é interessante como sedimentam e explicam vários eventos que são considerados pontos de inflexão, como algumas grandes pestes que mudaram expressivamente a história humana.
A pandemia não é um evento bem-vindo, é apenas inevitável dado que já instalado, certamente não efetuará a mágica de nos transformar em seres humanos muito melhores, mas certamente nos fará refletir um pouco sobre o estilo de vida que vínhamos levando, a necessidade de um sistema de saúde forte e resistente aos impactos sanitários e um sistema educacional fortalecido para que revalorizemos a ciência.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil. wcmc@mps.com.br