“Imagine que você está preso no tempo. Imagine não ter mais memória futura. Imagine ter a mente estacionada em uma determinada data, embora seu corpo continue a envelhecer. Triste, não é mesmo? Mas é o que ocorre na Síndrome de Korsakoff”
O efeito Covid-19
O que o Covid-19 e a Síndrome de Korsakoff têm em comum? A princípio e diretamente, nada. No entanto, a pandemia causada pelo vírus teve como consequência a quarentena, e o isolamento prolongado pode provocar diversos transtornos mentais, como, por exemplo, a depressão e o Transtorno de Ansiedade, bem como desenvolver hábitos pouco recomendáveis que indiretamente podem levar à Síndrome de Korsakoff. Apesar de rara e, talvez, pouco conhecida, pode causar danos irreversíveis ao cérebro.
A Síndrome de Korsakoff
Imagine que você está preso no tempo. Imagine não ter mais memória futura. Imagine ter a mente estacionada em uma determinada data, embora seu corpo continue a envelhecer. Triste, não é mesmo? Mas é o que ocorre na Síndrome de Korsakoff. A memória simplesmente se apaga após alguns minutos e o indivíduo volta ao momento em que ele estava um pouco antes. Eternamente.
Agora, imagine que um desconhecido se aproxima. Você o cumprimenta e pergunta quem ele é. Ele diz seu nome e sua profissão. Vocês conversam por um curto momento, uma conversa agradável, e então, o homem vai embora. O que você não sabe é que essa mesma conversa já aconteceu antes, exatamente do mesmo jeito. O desconhecido é um médico que já te examina há meses, mas para você será sempre um desconhecido.
No entanto, você se lembra exatamente do dia anterior. Você se lembra do seu aniversário de 25 anos e da sua noiva, Helena. Você se lembra de sua formatura, dos beijos roubados no cinema, do novo filme de sua atriz preferida. O que você não sabe é que o dia anterior foi dia 07/04/2000 e você está agora com 45 anos. Helena já está casada com outro homem e tem dois filhos. Sua atriz preferida já não atua há mais de 10 anos.
Sim, o passado ainda existe. Mas o tempo agora só passa fora de sua mente. Você ainda tem 25 anos e ainda vai se casar. Tem a vida inteira pela frente, sem saber que sua vida parou.
Quando, um dia, sem querer, você se depara com um espelho, seus olhos não conseguem acreditar no que estão vendo e você entra em pânico. Quem é aquele velho que te encara? É impossível. Você sabe que é você, mas como poderia ser você? Felizmente, a dor não demora muito a passar. Logo, tiram o espelho de sua frente e você já não se lembra de mais nada. Está novamente feliz.
Esse exercício de imaginação serve para ilustrar como se manifesta a Síndrome de Korsakoff, que é um transtorno amnéstico persistente em que a capacidade de codificar novas memórias é gravemente prejudicada. As características incluem amnésia proeminente, com dificuldade de aprendizagem de novas informações e esquecimento rápido, e tendência a confabulações. O que o indivíduo aprende é prontamente esquecido e sua vida só existe no passado.
Para quem se sensibilizou com o que leu até agora, uma boa e uma má notícia: a má é que ela não tem cura. A boa é que é possível evitá-la. Diferente do Mal de Alzheimer, que pode ser retardado, mas não necessariamente evitado, a Síndrome de Korsakoff pode facilmente ser detida. Mas já chegaremos lá.
Como funciona a memória?
Um rapaz, acometido pela Síndrome de Korsakoff, é chamado para tocar violão. Ele afirma que nunca tocou aquele instrumento na vida e se surpreende quando consegue tocar alguns acordes e até mesmo uma música inteira. Ele não faz ideia de que há muito tempo vem aprendendo a tocar e a cada dia aprende um pouco mais, embora nunca se lembre do que aprendeu, nem sequer de que algum dia tocou violão.
Como isso é possível se ele não consegue mais guardar nenhuma informação?
A memória é dividida em aspectos funcionais e espalhada por todo o cérebro. Resumida e simplificadamente, a memória é assim armazenada:
O lobo frontal é responsável pela memória de trabalho, aquela que utilizamos quando precisamos lembrar de alguns dados por apenas alguns segundos, como o telefone de alguém, ou dos números para fazer uma conta de cabeça. O lobo temporal, a área mais importante para a memória, é responsável pela maior parte de nossa memória, envolvendo principalmente a memória declarativa, ou seja, semântica e episódica (passagem do tempo, memórias de curto, médio e longo prazo).
Já o lobo parietal é responsável pela memória de procedimentos ou implícita, como, por exemplo, dirigir um carro, tocar um instrumento, andar de bicicleta, amarrar os sapatos.
Assim, embora o cérebro não consiga formar mais memórias declarativas, a memória implícita, aparentemente, permanece ilesa. Por esse motivo, quem sofre da Síndrome de Korsakoff pode continuar aprendendo novas habilidades, embora nunca vá perceber isso.
Qual é a causa desse mal tão devastador?
O grande vilão da Síndrome de Korsakoff é uma combinação da falta da vitamina B1 com o alcoolismo. O excesso e abuso de álcool pode prejudicar a absorção de Tiamina no organismo e causar um efeito devastador sobre o sistema nervoso central, prejudicando a memória. Novas memórias não conseguem mais ser produzidas, enquanto as memórias antigas permanecem intactas.
O elevado consumo de álcool, não apenas por parte da população adulta, mas também por grande parte dos jovens, está se tornando cada vez mais preocupante para a saúde pública.
Atualmente, o estresse cada vez maior leva o indivíduo a buscar o relaxamento nas bebidas alcoólicas. O álcool diminui o nosso medo, mascara nossas inseguranças, torna pessoas tímidas em indivíduos mais sociáveis, faz a vida parecer mais leve e bela. Como o álcool tem efeito depressor, assim que ele é liberado do organismo, o individuo pode se sentir pior do que ele estava e a solução é beber novamente.
Com o isolamento, devido ao Covid-19, há indícios de que o consumo do álcool está se acentuando. Talvez por estresse, por conta do medo, da situação. Talvez por uma tristeza aguda que o indivíduo não consegue enfrentar. Talvez por ter perdido o emprego, e a bebida seja a única fonte de consolo. Talvez pelo tédio, por não ter nada melhor para se fazer. Talvez porque a solidão esteja insuportável. Enfim, há vários motivos possíveis para o aumento do consumo de bebidas alcoólicas nessa época de crise.
Se o álcool não viciasse, talvez não houvesse tanto problema assim. Mas ele vicia. E se o isolamento durar um tempo considerável, o indivíduo pode voltar à vida normal com grandes tendências ao alcoolismo.
Todos sabem que a bebida pode causar cirrose. Talvez alguns saibam que a bebida pode causar depressão, ansiedade e insônia. Talvez poucos saibam que a bebida pode aumentar as taxas de câncer no esôfago e estômago. Tudo isso é muito grave, tudo é devastador. No entanto, a Síndrome de Korsakoff rouba sua vida, seu futuro, mesmo que você continue vivo. Você se torna prisioneiro de sua mente, encarcerado em seu passado, destituído de seu presente. Perder a memória é perder a identidade.
A boa notícia
A Síndrome de Korsakoff é rara e não ataca de uma vez e repentinamente. O indivíduo começa a ter lapsos de memória, ficar confuso, desorientado. Agora, o médico, após os exames que confirmem o diagnóstico, irá adverti-lo para não mais beber e, se for o caso, providenciará o suprimento da vitamina B1.
Caso o indivíduo ignore as prescrições médicas e continue a beber exageradamente, então ele estará correndo um sério de risco de danificar irremediavelmente sua memória.
Como bem disse Luis Buñuel, vida sem memória não é vida. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação.
É imprescindível, portanto, que o indivíduo que sofre de alcoolismo busque ajuda profissional. Não basta a abstinência, embora ela seja fundamental. É importante, também, descobrir e tratar o foco psicológico que levou aquela pessoa a beber demais.
Sim, a Síndrome de Korsakoff é rara. No entanto, você apostaria sua vida nisso?
Lucia Moyses é psicóloga, neuropsicóloga e escritora (www.luciamoyses.com.br)
Natural de São Paulo, Lucia teve sua primeira formação em análise de sistemas pela FATEC (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo), complementando os seus estudos com curso de pós-graduação na UNICAMP (Universidade de Campinas). Atuou nessa área por mais de 20 anos e foi convidada para ser coautora em uma obra da IBM, em sua sede nos Estados Unidos. Administrou cursos e palestras, inclusive para pessoas com necessidades especiais.
A partir desta experiência, a escritora se interessou pela área de humanas. Foi então que decidiu seguir a carreira de Psicóloga, concluindo o bacharelado na FMU (Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas) e, logo depois, se especializando em Neuropsicologia e Reabilitação Cognitiva pelo (INESP) – Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa.
Em 2013, a autora lançou seu primeiro livro “Você Me Conhece?” e dois anos depois o livro “E Viveram Felizes Para Sempre”, ambos com um enfoque em relacionamentos humanos e psicologia.
Três anos após a especialização em Neuropsicologia, Lucia lançou os três primeiros livros: “Por Todo Infinito”, “Só por Cima do Meu Cadáver” e “Uma Dose Fatal”, da coleção DeZequilíbrios. Composta por dez livros independentes entre si, a coleção explora a mente humana e os relacionamentos pessoais. Cada volume conta um drama diferente, envolvendo um distúrbio psiquiátrico, tendo como elo o entrelaçamento da vida da personagem principal.
Em 2018, a psicóloga lançou mais três livros: “A Mulher do Vestido Azul”, “Não Me Toque” e “Um Copo de Veneno”, totalizando seis livros da coleção. Em 2020, Lucia, lança o livro “A Outra”.
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