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A sombra e o fato

Daniel Medeiros*

Há mais de dois mil anos, o filósofo Platão criou a alegoria da caverna para descrever como a maior parte das pessoas vive em meio ao nevoeiro das opiniões, prisioneiras de seus sentidos e do mundo limitado e distorcido que deriva deles, sempre que nos afiançamos apenas neles. Toda a crença mítica nasce daí: nossa dificuldade em explicar o que nossos sentidos não são capazes de apreender – como o invisível, por exemplo – encontra guarida nas narrativas de seres poderosos e misteriosos, a guiar nossos destinos, escolhendo os que serão castigados e os que serão protegidos; e na existência de uma natureza finalista, que submete o vir-a-ser dos indivíduos pela “qualidade” que eles possuem. Muitos  escravizamo-nos a essas narrativas, pois que elas se tornam também explicações sociais e políticas, fundamentando diferenças e hierarquias.

A Ciência é um movimento de rompimento dessa cadeia que nos condena a viver em meio às sombras do “dizem que”. Este é, porém, um esforço dificílimo, pois precisa vencer duas forças opostas: a de buscar esclarecimento em meio às sensações enganadoras e a de sobreviver aos que se opõem a qualquer possibilidade de sair da caverna, rompendo as regras de funcionamento que os destaca como reis dos cães ou como cães dos reis. Há, portanto, uma barreira que é a de vencer às dificuldades mesmas de um corpo sensível em busca de apreender fatos objetivamente e outra barreira que é a dos obscurantistas que amam as sombras onde quase nada se distingue e só aí eles podem ter sua chance. Porém, basta uma luzinha que seja e seus rostos parvos se revelam. Por isso, deve-se condenar a luz, lançando as sombras sobre ela, confundindo as pessoas, cujos olhos ardem e as cabeças doem com a exposição ao Conhecimento. Por fim, basta associar essa vertigem, essa dor (de aprender) a uma doença, a um mal que precisa ser extirpado ou calado. E pronto: os líderes míticos se travestem de salvadores. Até da Pátria.

A história do Conhecimento nos  últimos dois mil anos foi a busca incessante pelo que havia fora da caverna de nosso corpo, essa busca por esses outros que não somos nós e como eles se relacionam conosco e como podemos interagir e também como devemos nos proteger da presença deles. Para isso, precisávamos olhar para fora sem a mediação – ou com o mínimo de mediação – de nossa própria subjetividade, nossos temores e as crenças que foram sendo infundidas por um longo e largo caminho de ignorância e que, para se legitimar, passou a se chamar (também) de “tradição”.

O Fato é algo que existe e precisamos olhar para ele na sua inteireza, com o máximo de clareza, entendendo sua dimensão e os efeitos de sua interação com o nosso corpo. Para isso, precisamos, igualmente, evitar que nossas sensações e crenças interfiram no processo de aproximação e observação desse  “outro”. Isso demanda uma preparação árdua. Sócrates comparava o Conhecimento a um parto, ou seja, um processo longo e doloroso. Platão, na porta de sua escola, a Academia, mandou pendurar uma placa na qual estava escrito: “aqui só entram os geômetras”. A ideia de Ciência, lentamente, foi sendo forjada em torno do esforço de suspensão da nossa subjetividade, condição para que pudéssemos aprender com os outros seres vivos e não apenas submetê-los à nossa régua de valores e crenças.

Essa tem sido uma trajetória com muitas vitórias. No entanto, a humanidade como um todo caminhou de maneira profundamente desigual. E os que ficaram na caverna, atados voluntariamente ou inconscientemente às correntes da doxa, ameaçam agora efetivar uma revolta tão curiosa quanto amedrontadora: a de fechar a entrada da caverna e impedir o acesso aos Fatos. Na escuridão que tudo confunde, somente nela, é que a ignorância pode ser soberana.

O que estamos vivendo, não nos iludamos, é uma disputa pelo poder. Os vírus, a vacina, e até mesmo aquele remédio pra vermes, são todos parte desse combate de trevas e luz.

 

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