*Daniel Medeiros
Duas notรญcias, aparentemente distintas entre si, revelam uma das faces mais brasileiras da civilidade.
A primeira รฉ a onda de militarizaรงรฃo das escolas pรบblicas. A propostaย alegrou pais (e muitos professores), crentes de que o que falta para a Educaรงรฃo do paรญs deslanchar รฉ alguรฉm pra colocar essa moรงada em fila e exigir disciplina e obediรชncia, em nome do amor ร Pรกtria, que, como sabemos, tem como bandeira a exigรชncia da ordem para viabilizar o progresso.
O governo federal investiu em propaganda e os governos estaduais aliados embarcaram na empreitada, aprovando as leis necessรกrias em suas Assembleias, para promover essa โtransformaรงรฃo” na Educaรงรฃo brasileira. Agora – dizem seus arautos – os jovens vรฃo aprender seus deveres para com o paรญs e nรฃo apenas direitos, “porque o problema do Brasil รฉ o excesso de direitosโ, lembrou outro dia o lรญder do presidente no Congresso. Os benefรญcios sociais devem serย resultado do esforรงo e do mรฉrito individuais e nรฃo serem dados de mรฃo beijada. Tudo exige ordem. Todos devem saber entrar e permanecer na fila.
O antropรณlogo Roberto da Matta disse, em livro recente, que nada รฉ mais democrรกtico do que a fila. O seu princรญpio รฉ um sรณ: o tempo de chegada. Pode ser branco, preto, rico, pobre, poderoso ou humilde, a fila iguala a todos. E nela, tambรฉm, exerce-se o fundamento mais sofisticado da igualdade: a isonomia. Se a fila exige de todos uma espera para serem atendidos, aqueles que, por idade ou deficiรชncia, nรฃo sรฃo capazes de esperar tanto quanto as pessoas jovens e saudรกveis, devem ter seu tempo de atendimento reduzido. No mais, respeito ร fila รฉ um dos maiores sinais do estรกgio civilizatรณrio ao qual uma comunidade รฉ capaz de chegar.
Essa afirmaรงรฃo seria um forte argumento para defender as escolas โcรญvico-militaresโ, pois ensinar jovens a ficar na fila, a esperar na fila, a obedecer em fila, a seguir em fila, รฉ, portanto, um ganho civilizatรณrio para toda a sociedade. Palmas e gritos de euforia.
Mas nรฃo รฉ bem assim. Para Roberto da Matta, a fila รฉ a coisa mais odiada que existe no Brasil, justamente porque impede que a superioridade se revele e, com ela, a inveja que acarreta aos que precisam continuar nela. Afinal, quem nรฃo saliva de desejo diante dos avisos nos aeroportos liberando a entrada para o inรญcio do voo para os portadores de cartรตes diamante ou passageiros de primeira classe e classe executiva? Por outro lado, quem nรฃo se sente quase imortal por conhecer o porteiro da boate e poder passar pela longa fila de convidados esperando no tempo, levando consigo dois ou trรชs admiradores para passar na frente de todo mundo?
A fila, diz o antropรณlogo, รฉ o destino de quem nรฃo รฉ capaz de preencher de conteรบdo a frase โvocรช sabe com quem estรก falando?โ. Ao contrรกrio do lugar da igualdade, a fila รฉ a expressรฃo dos desiguais, pois sรณ eles precisam ficar nela. Quem se destaca, quem pode, quem manda, vai pro camarote no elevador privativo, sem se misturar com o “pรบblico”.
A outra notรญcia รฉ a dos fura-filas da vacinaรงรฃo contra a Covid. Mal comeรงou o processo de imunizaรงรฃo – jรก que tรฃo poucas vacinas foram disponibilizadas pelo governo federal – e os poderosos, filhos de poderosos, esposas de poderosos, amigos prรณximos de poderosos se apresentaram para ocupar o lugar dos mรฉdicos e mรฉdicas da linha de frente, em nome de um interesse ainda maior do que o interesse de todos: o deles prรณprios. As justificativas sรฃo vรกrias e todas grotescas, porque nรฃo hรก mesmo uma necessidade tรฃo grande em justificar o que รฉ corrente no paรญs, isto รฉ, sua cultura de que ordem รฉ pra quem deve obedecer. Quem manda nรฃo precisa ser cรญvico. Quem nรฃo tem nada a nรฃo ser aqueles direitos previstos lรก na Constituiรงรฃo, precisa aprender a ficar na fila, em ordem, esperando sua vez chegar, se chegar. Daรญ a ideia das escolas cรญvico-militares.
E depois dizem que o governo nรฃo tem projetos para o paรญs.
*ย Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
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