A Sociedade de Advogados no contexto da lei brasileira

Por Alfredo de Assis Gonรงalves Neto, professor titular em Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paranรก

O direito comercial nasceu da prรกtica do comรฉrcio e foi se consolidando pela aรงรฃo dos mercadores. Os primeiros Cรณdigos comerciais, dentre eles o brasileiro, nรฃo se afastaram disso. Essa รฉ a razรฃo pela qual houve a enumeraรงรฃo dos atos de comรฉrcio, que consistiam naqueles que eram praticados pelos comerciantes, assim compilados pelo Cรณdigo Comercial francรชs, considerado o pai de todos os cรณdigos comerciais modernos. Por retratarem as relaรงรตes comerciais da รฉpoca, ficaram de fora desse rol muitos outros atos que se encaixam, perfeitamente, na ideia de comรฉrcio no sentido econรดmico da expressรฃo (a exemplo do ramo imobiliรกrio, da prestaรงรฃo de serviรงos, da atividade rural etc.).

Tal enumeraรงรฃo nรฃo guardava carรกter cientรญfico. A dificuldade estava, entรฃo, em determinar o que seria a matรฉria compreendida pelo Direito Comercial. Vรช-se nos autores antigos um conceito positivista de comรฉrcio que nada explica, a ponto de se ter dito que o direito comercial era o direito dos atos e das pessoas que a lei reputava mercantis. Voltando ao tempo, era como dizer โ€œo direito comercial รฉ aquilo que a lei diz que รฉ.โ€

Essa dicotomia refletiu-se no tratamento jurรญdico das sociedades em geral: no Brasil elas foram reguladas pelo Cรณdigo Comercial e, posteriormente, pelo Cรณdigo Civil. Sujeitavam-se ao regime jurรญdico do Cรณdigo Comercial, ou seja, ao direito comercial, as sociedades que tinham por objeto matรฉria de comรฉrcio (assim entendida como aquela abrangida pelo direito comercial); ao direito civil, aquelas que tinham por objeto atividades reguladas pelo Cรณdigo Civil.

A sociedade de advogados surgiu nesse ambiente. Embora houvesse resistรชncia por parte dos advogados, mesmo antes do nascimento da OAB, em admitir sua atuaรงรฃo por meio de uma sociedade, ante a preocupaรงรฃo de que poderia desvirtuar a essรชncia da advocacia (principalmente em razรฃo do sigilo profissional e da proibiรงรฃo de um advogado poder usufruir do trabalho de outro), o fato รฉ que, nos anos 50 do Sรฉculo XX, foi constituรญda a primeira sociedade de advogados, legalmente permitida por forรงa da regra entรฃo contida no art. 1.371 do Cรณdigo Civil de 1916, que previa a possibilidade de ser constituรญda uma sociedade particular, nรฃo sรณ para โ€œexecutar em comum certa empresa, certa indรบstriaโ€, como para โ€œexercer certa profissรฃoโ€. Nรฃo por acaso, a iniciativa de sua constituiรงรฃo foi de um diplomata norte-americano, cujo paรญs de origem sempre admitiu a atuaรงรฃo de advogados em sociedade, sem ofensa a questรตes รฉticas.

A OAB, apรณs alguma hesitaรงรฃo, acabou aceitando o fato consumado e, no estatuto de 1963, cautelosamente facultou a reuniรฃo de advogados โ€œem sociedade civil de trabalho, destinada ร  disciplina do expediente e dos resultados patrimoniais auferidos na prestaรงรฃo dos serviรงos de advocaciaโ€ (art. 77).

Como se pode observar, a sociedade de advogados tem por fim permitir aos advogados que nela se reรบnam para disciplinar o expediente e os resultados patrimoniais que auferirem no exercรญcio de sua profissรฃo. Difere esse enunciado do tradicionalmente adotado pelos nossos cรณdigos. ร‰ o que se extrai da redaรงรฃo do art. 981 do Cรณdigo Civil de 2002, segundo o qual a sociedade รฉ constituรญda com a finalidade de reunir pessoas โ€œque reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviรงos, para o exercรญcio de atividade econรดmica e partilha dos resultados.โ€

Embora o exercรญcio da advocacia hoje seja enquadrado como uma atividade econรดmica, em contraste com atividades que nรฃo produzem resultados para seus membros (associaรงรตes e fundaรงรตes), e a sociedade de advogados tenha em mira a distribuiรงรฃo dos resultados entre seus sรณcios, o fato รฉ que ela se destaca, nรฃo pelo fato de reunir esforรงos ou recursos para proveito comum, mas por ter por principal fim proporcionar aos advogados o exercรญcio de seu trabalho profissional em conjunto e de modo disciplinado (organizado).

ร€ altura jรก estou a dizer que advogado, que nรฃo exerce a advocacia, nรฃo pode ser sรณcio da sociedade de advogados โ€“ o que vem ratificado na proibiรงรฃo de que na sociedade de advogados ingresse sรณcio que nรฃo seja advogado.

Esse conceito, contido no estatuto anterior, nรฃo se alterou com o advento do Estatuto da Advocacia de 1994, o qual, ao dispor sobre o tema, enfatizou tratar-se de uma sociedade civil (art. 15).

O Cรณdigo Civil de 2002 procurou eliminar a dicotomia entre sociedade civil e comercial, mas a substituiu por outra, distinguindo as sociedades em empresรกrias e simples. E a Lei 13.247/2016, ao criar a sociedade unipessoal de advocacia, alterou o art. 15 do Estatuto, que ficou assim redigido: โ€œOs advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestaรงรฃo de serviรงos de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral.โ€

Ou seja, nรฃo hรก dรบvida quanto a sociedade de advogados ser uma sociedade simples.

Existiram vozes โ€“ e ainda existem โ€“ que procuram atribuir ร s grandes sociedades de advogado, cuja estrutura organizacional assemelha-se a uma empresa, a classificaรงรฃo de sociedades empresรกrias. Tal orientaรงรฃo nรฃo se sustenta por duas razรตes: a primeira รฉ a de existir disposiรงรฃo expressa de lei atribuindo ร  sociedade de advogados a qualificaรงรฃo de sociedade simples; a segunda estรก em que o objeto dessa sociedade รฉ proporcionar aos seus sรณcios o exercรญcio de atividade intelectual que, a seu turno, tambรฉm por lei, nรฃo se contรฉm na atividade prรณpria de empresรกrio (CC, art. 996).

ร‰ bem verdade que muitas decisรตes de nossos tribunais tรชm nos ensinado que nem sempre a lei deve ser observada. De qualquer forma โ€“ e isso serve para outras sociedades de pessoas que exercem atividade intelectual โ€“ รฉ preciso destacar que a distinรงรฃo entre sociedade empresรกria e sociedade simples รฉ feita pelo objeto que visam a realizar. E aรญ se vรช que sociedade empresรกria รฉ aquela que tem por objeto o exercรญcio de atividade prรณpria de empresรกrio โ€“ ou seja, uma atividade econรดmica organizada para a produรงรฃo ou a circulaรงรฃo de bens ou de serviรงos, que nรฃo seja intelectual ou rural. Ora, se o objeto da sociedade de advogados รฉ uma atividade intelectual, nรฃo hรก como atribuir-lhe a condiรงรฃo de sociedade empresรกria.

Nรฃo se diga que a sociedade de trabalho intelectual se pode enquadrar na ressalva do art. 966 do Cรณdigo Civil. Nele nรฃo se enquadra pela simples razรฃo de que, se a natureza simples ou empresรกria รฉ determinada pelo objeto, nรฃo hรก como aplicar a regra do parรกgrafo รบnico do art. 966 do Cรณdigo Civil, pois, ao nascer, nรฃo se sabe qual serรก o futuro dessa sociedade, a ponto de a advocacia tornar-se elemento da empresa.

Abro um parรชntesis para dizer que mesmo esse raciocรญnio รฉ viciado, uma vez que elemento de empresa nunca hรก de ser a prรณpria empresa, mas um elemento, isto รฉ, uma parte da atividade exercida por um ente que exerce atividade econรดmica organizada, nรฃo intelectual ou rural. ร‰ o mรฉdico num SPA, รฉ um engenheiro numa empresa de construรงรฃo civil etc. Pelas leis em vigor, a atividade intelectual pura, por mais organizada que seja, jamais serรก empresarial.

Prosseguindo, quero enfatizar que, afora a total inseguranรงa jurรญdica, haveria extrema dificuldade em determinar qual o momento em que a sociedade de intelectuais passaria de simples para empresรกria, obrigando-a a se transferir do registro civil de pessoas jurรญdicas (ou da OAB) para o registro pรบblico de empresas mercantis e a se submeter ao regime jurรญdico de sociedade empresรกria.

Isso assentado, observo que, ao participar da comissรฃo que elaborou o Projeto de Cรณdigo Comercial para o Senado Federal, sugeri, e foi acolhida, a ideia de ser normatizada a sociedade de profissรฃo intelectual, justamente para evitar equรญvocos, visto que ela possui peculiaridades que nem sempre se resolvem no modelo da sociedade simples.

Como sociedade simples, a sociedade de advogados nรฃo proporciona aos sรณcios a limitaรงรฃo de sua responsabilidade pelas obrigaรงรตes por ela assumidas e as normas que lhe sรฃo peculiares acabam por reforรงar tal assertiva. Nรฃo รฉ caso, nesta apertada sรญntese, de analisar os diversos aspectos que pode ter essa responsabilidade. Limito-me, aqui, a relembrar que: (a) na sociedade simples, os sรณcios sรฃo subsidiariamente responsรกveis pelas obrigaรงรตes sociais, na proporรงรฃo de sua participaรงรฃo societรกria, com a possibilidade de ser ajustada sua solidariedade (CC, arts. 1.023 e 1.024); e, (b) como a atividade intelectual รฉ inerente ร  pessoa natural e essa pessoa, segundo o princรญpio geral de responsabilidade civil, รฉ responsรกvel pelos atos que pratica, o agir de um advogado, sรณcio ou nรฃo, mas integrante do corpo de advogados de uma sociedade de advogados, atrai para si a responsabilidade por eventual dano causado ao cliente, sendo a sociedade com ele solidรกria pelo ressarcimento (art. 17 do Estatuto da OAB). Nesse รบltimo caso, os demais sรณcios tambรฉm respondem, porรฉm em carรกter subsidiรกrio e proporcional, pela diferenรงa que faltar para a completa reparaรงรฃo do dano.

Resta uma palavra sobre a sociedade unipessoal de advocacia.

A limitaรงรฃo da responsabilidade do empresรกrio individual surgiu com a finalidade precรญpua de preservar seu patrimรดnio pessoal (nรฃo afetado ao exercรญcio de sua empresa) ao cumprimento das obrigaรงรตes assumidas em seu negรณcio, muitas vezes sujeito a flutuaรงรตes do mercado e a acontecimentos a ele nรฃo atribuรญveis. Daรญ vieram sendo admitidas algumas soluรงรตes para sua proteรงรฃo.

No Brasil jรก conhecรญamos a empresa pรบblica e a subsidiรกria integral, que nรฃo se prestavam para esse papel. Nesta รบltima dรฉcada, surgiu a figura da Eireli para limitar a responsabilidade do empresรกrio individual, a qual vem sendo equivocadamente utilizada, mas com o beneplรกcito da Receita Federal, para os intelectuais desenvolverem suas atividades profissionais. Os advogados nรฃo tinham e nรฃo tรชm acesso a ela, uma vez que o Estatuto da Advocacia sรณ contempla a possibilidade de ele agir como advogado inscrito ou por meio de uma sociedade de advogados. A Lei 13.247/2016, acima referida, surgiu, entรฃo, para introduzir no Estatuto da OAB a sociedade unipessoal de advocacia. Trata-se de um desvario legislativo, embora muitรญssimo bem recebido e aplaudido pela advocacia. Nรฃo fico atrรกs e recomendo sua utilizaรงรฃo, apesar de se tratar de uma distorรงรฃo advinda por razรตes exclusivamente fiscais.

Efetivamente, desconsiderando o fato de a criaรงรฃo de um ente dessa natureza exigir uma duplicidade de registro de um mesmo advogado (sua inscriรงรฃo para tornar-se advogado e advogar; e o registro de sua sociedade unipessoal para, por meio dela, advogar), cumpre reconhecer que a tributaรงรฃo do profissional autรดnomo โ€“ e o advogado o รฉ โ€“ costuma ser bem mais gravosa para seus rendimentos do que aquela que incide sobre os resultados de uma sociedade de advogados. Nesta, o total da tributaรงรฃo atinge a casa de 14% dos resultados do exercรญcio (IR, PIS, COFINS, CSLL etc.), ao passo que o autรดnomo, alรฉm de onerar o cliente, se pessoa jurรญdica, em 20% sobre os honorรกrios que desembolsa – o que faz com que as pessoas jurรญdicas (sociedades, associaรงรตes ou fundaรงรตes) procurem evitar esse รดnus, pagando sempre que possรญvel a outra pessoa jurรญdica โ€“ sujeitam-se ร  tributaรงรฃo progressiva do Imposto de Renda e, eventualmente, a outros encargos (complementaรงรฃo do INSS, ISS etc.). Dependendo da renda anual, podem ingressar no Simples Nacional, que, conquanto progressivo, engloba todos os tributos federais; nesse sistema, o percentual sobre o faturamento รฉ bastante reduzido.

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Professor Alfredo de Assis Gonรงalves Neto - Foto: Divulgaรงรฃo
Professor Alfredo de Assis Gonรงalves Neto – Foto: Divulgaรงรฃo

Por Alfredo de Assis Gonรงalves Neto, professor titular em Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paranรก

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