Daniel Medeiros*
Vivo naquele tempo no qual sabemos que, salvo rarรญssimas exceรงรตes, jรก tenho mais passado que futuro. Uma consequรชncia dessa constataรงรฃo รฉ a vontade de desacelerar tudo, apreciar quadro a quadro cada coisa que aparece na minha frente, cada cheiro, som, gosto. ร fato que o tempo no qual vivemos dรก poucas chances para isso e, por isso, vivo no intenso dilema de produzir muito ou entregar-me aos prazeres inรบteis. Entre o รณcio e o negรณcio. Vou equilibrando-me entre os segundos rรกpidos e as horas lentas, entre os dias cheios e os meses largos, entre as decisรตes necessรกrias e as procrastinaรงรตes prazerosas. E, ao pensar sobre essa dialรฉtica do existir/viver, vou percebendo como o tempo, esse algoz sem rosto, รฉ nosso interlocutor mais presente, nosso mais caro fiel depositรกrio do passado, nosso confidente dos mais loucos desejos de futuro.ย
โฆ
Hannah Arendt, minha autora favorita, afirma que “todo fato tem causas, mas nem toda causa tem consequรชncia”. De tantas coisas que ela disse e que me impressionam, essa frase sempre me pรตe em um alerta inexplicรกvel. Isso porque sou professor de Histรณria e, ao longo das linhas de tempo que traรงo nos quadros verdes, hรก sempre uma certeza sobre o “isso ocorreu e entรฃo…”. Mas somente os fatos cristalizados na Histรณria รฉ que sรฃo capazes de iluminar os seus passados. O fato, em si, nรฃo anuncia nada e nรฃo รฉ o encaixe de nada que o antecede. Ou, nรฃo necessariamente. Somos o evento e suas contingรชncias. Apesar de nosso desejo de maktub. Apesar de nossa vontade de vislumbre, de dizer: “nรฃo te falei?”.
โฆ.
Uma das coisas mais constrangedoras dos tempos atuais รฉ a busca por eufemismos para esconder a idade das pessoas. O pior de todos, sem dรบvida, รฉ o que ouvimos nas farmรกcias e nos aeroportos: โas pessoas da melhor idadeโ. Como se fosse uma escolha ou um prรชmio. Como se abrisse um corredor de jovens com os rostos corados e olhos รบmidos aplaudindo as pessoas com suas idades รณtimas, excelentes. Desde que, em tempos imemoriais, descobrimos que morrerรญamos inevitavelmente, cada dia que passa nรฃo nos leva para um lugar melhor, porque nรฃo pode haver โmelhorโ quando nรฃo hรก uma opรงรฃo. O stalinismo jรก devia ter nos ensinado isso hรก muito tempo.
โฆ.
Aos 50, lembramos de mais coisas do que deverรญamos para viver no tempo presente. Um tempo de notรญcias muito rรกpidas e fluidas. Mas nossas lembranรงas sรฃo insistentes! No inรญcio do ano, uma menina, angustiada, ao lado da coleguinha, perguntou-me: “professor, Tancredo morreu em 1984 ou 1985?โ E lรก veio tudo o que aconteceu naquele fatรญdico domingo, 21 de abril de 1985, dez e tanto da noite, quando o secretรกrio de imprensa (Antรดnio Britto) iniciou a nota dizendo: “Lamento informar…”. Mas aรญ a menina jรก estava longe. A โangรบstia” que ela desejava debelar era menos intensa. A histรณria nรฃo era para ela, nem dela. E fiquei eu, ali, catando os restos dessa lembranรงa pelo corredor, antes que os demais alunos, desajeitados, pisassem sobre o olhar de dor do secretรกrio de imprensa..
โฆ.
Lendo Clรฉment Rosset, reflito sobre o paradoxo de crer sem crer, viver sem uma eira nem beira racional, amar para ter certeza, sabendo da evanescรชncia do amar. Aos 50, acreditamos – infantilmente – estarmos sรณ uma pouco alรฉm da metade da vida. Mas – batam na madeira – nada impede que seja o รบltimo dia. Nรฃo hรก nada real que garanta esta conta, por mais que acreditemos nela. E entรฃo adiamos projetos para os 60. Viver tranqรผilo, ok, depois dos 70. Mas, chegaremos lรก? Nรฃo importa. Mesmo que nรฃo exista nada certo alรฉm do minuto agora. Sรณ que nรฃo รฉ nada fรกcil encarar essa evidรชncia. Como lembra Clรฉment: “se a incerteza รฉ cruel, รฉ que a necessidade de certeza รฉ premente e a aparentemente inextirpรกvel na maioria dos homens”.
* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.ย