Na bela canรงรฃo de Cristรณvรฃo Bastos e Chico Buarque, o personagem vive o fim do amor e a possibilidade do reencontro. A letra diz : โprometo te querer, atรฉ o amor cair, doente.โ E, ainda a tempo de evitar uma fratura permanente, anuncia: “depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza”.
Acordo a cada dia nesses รบltimos tempos e olho para todos os cantos e percebo que estou perdendo a capacidade de imaginar um tempo assim, encantado. Isso me enche de tristeza e tenho dificuldade de viver envolvido por esse sentimento.
No trรขnsito, na fila do supermercado, na farmรกcia, na calรงada enquanto caminho na volta do trabalho, no pedido de informaรงรฃo, na conversa com os parentes e, soberanamente, nas redes sociais, vivemos muitos de nรณs como nos reinos dos desenhos animados, depois que a princesa รฉ enfeitiรงada e a bruxa passa a mandar em tudo. O cรฉu estรก permanentemente plรบmbeo, as รกrvores ressequidas – com galhos em forma de braรงos enrugados que terminam em garras sem folhas e sem frutos – o solo รกrido, sem cantos dos pรกssaros ou movimento dos animais na mata. Sรณ desolaรงรฃo e medo.
Atรฉ as noites nรฃo escapam desse ambiente de amor doente. Como um personagem kafkiano, tenho constantes sonhos inquietos e acordo pasmado com o cenรกrio sem matizes do cotidiano que se impรดs ร s nossas vidas. Estamos mergulhados no loop infinito dos noticiรกrios, dos discursos dos motoristas de uber, das mensagens do grupo da pescaria, sempre tรฃo estรบpidas, tรฃo caricatas, que chego a pensar que houve um sequestro cognitivo generalizado na humanidade. Seria uma explicaรงรฃo consoladora. Mas รฉ sรณ um tempo que drenou e tirou do nosso corpo todo o sentimento. O que ficou foi uma espรฉcie de borra, um resto azedo da nossa sensibilidade, um sinal de incรชndio mandando-nos agir rapidamente para nรฃo sucumbir de vez.
Entรฃo respiro. Conto os sobreviventes de meu exรฉrcito dizimado. Olho-me no espelho e busco nรฃo me assustar com as marcas que nรฃo sairรฃo mais. Ensaio gestos leves, cruzo minhas mรฃos , aperto-as e tento sentir de novo o frรชmito de um contato amigรกvel, caloroso. ร preciso recuperar embaixo dos trapos sujos a lembranรงa dos momentos de encher os olhos. Depois รฉ necessรกrio reaprender as palavras naquele tom de quem traz uma boa nova. De quem compra um presente sem data ou sem motivo e entrega pelo prazer da surpresa e do sorriso do Outro.
Hannah Arendt ensina que hรก apenas duas formas de superar a imprevisibilidade da vida. Para modificar o passado, o perdรฃo, que รฉ a decisรฃo de fechar a torneira da dor diรกria provocada por um erro. Para modificar o futuro, a promessa, que รฉ uma jura de presenรงa em um tempo ermo e fugaz. Tanto para uma atitude quanto para a outra รฉ exigida puma dose de humanidade que รฉ preciso coletar aos poucos, pois nรฃo รฉ produto abundante. E quando reรบne a quantidade exigida, รฉ preciso juntar uma outra dose de ampla generosidade para gastรก-la com quem foi responsรกvel por um passado torpe ou uma dose de coragem para gastรก-la com a pessoa que desperta esse desejo de um encontro futuro.
Esse รฉ o antรญdoto para a tristeza desses tempos, embora frรกgil e incerto. ร a chance de sair do labirinto soturno e voltarmos a ver algum verde no campo, alguma fruta na รกrvore, cantos na floresta, sorrisos no espelho, abraรงos nas esquinas, beijos na boca, juras de amor e de amizade. Apenas com esse exercรญcio da nossa humanidade somos capaz de encontrar, “no รบltimo momento, um tempo que refaz o que desfezโ.ย E vivรช-lo com mais delicadeza.
* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.