*Daniel Medeiros
A ideia de dignidade em Pico Della Mirandola, pensador humanista italiano do sรฉculo XV, autor deย Um Discurso Sobre a Dignidade do Homem,ย รฉ a de que somos os รบnicos seres de Dโus capazes de constituir nosso destino e, por isso, podemos almejar chegar aos mais altos lugares, os mais nobres, que o autor chamou apropriadamente de Bem. Hannah Arendt, pensadora alemรฃ que viveu os trรกgicos anos do nazismo, atribuiu ao pรกria a capacidade de ser digno – um ser desejoso de liberdade –ย capaz de sentir o sofrimento do outro, diferente do mero arrivista, que quer apenas ser enquadrado e considerado um igual. Para Arendt, alguรฉm ser retirado de seu meio, de sua cultura, de sua lรญngua, de seus familiares, permite, em meio ao sofrimento, aprender queย a condiรงรฃo de Ser Humano รฉ sempre compartilhada – e sรณ nessa pluralidade que รฉ possรญvel construir nossa subjetividade. A palavra dignidade estรก relacionada com distinรงรฃo. Por essa razรฃo que os representantes de Estados sรฃo chamados de dignatรกrios. Ser digno รฉ uma capacidade de toda pessoa dotada de razรฃo. Mas รฉ necessรกrio tambรฉm a manifestaรงรฃo da vontade, esse querer enxergar quem se encontra ร sua frente nรฃo como um estranho, inoportuno, mas como um igual e capaz de sentir o mesmo que qualquer um de nรณs. Ou seja, ser digno รฉ saber distinguir e querer distinguir. Aรญ รฉ que sรฃo elas.
Nesses tempos nos quais vivemos, muitas pessoas usam a razรฃo em longos arrazoados bem concatenados para negar o direito dos outros a existir e a viver de maneira que qualquer um gostaria de viver. O negacionismo geral que nos rodeia รฉ uma negaรงรฃo tambรฉm da dignidade humana. Mirandola afirmava que os animais nรฃo sabem distinguir e os anjos nรฃo podem distinguir. Sรณ nรณs somos capazes de. Mas hรก, entre nรณs, muitos animais que se consideram anjos ao afirmarem, com pompas e circunstรขncias, que a morte รฉ uma inevitabilidade, mas a perda do faturamento รฉ um desastre sem fim. O cรกlculo, embora pareรงa absurdo, รฉ fรกcil de explicar: a vida รฉ a dos outros; o faturamento รฉ de quem defende essa ideia. Interessante que essas pessoas buscam legitimar suas falas com termos sisudos como “desemprego e pobreza, depressรฃo e suicรญdio”. Interessante porque hรก sรฉculos essa tem sido a descriรงรฃo do dia a dia da maior parte da populaรงรฃo pobre do paรญs e nunca houve esse clamor e essa mobilizaรงรฃo antes. Nunca houve carreatas contra o desemprego, ou contra a depressรฃo dos trabalhadores sem condiรงรตes de garantir um mรญnimo para seus filhos, nem manifestaรงรตes com bandeiras desfraldadas para protestar contra as pรฉssimas condiรงรตes de vida, a falta de infraestrutura para as pessoas que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. Por quem esses sinos dobram, caras pรกlidas? Dobram por vocรชs, nรฃo? Sรณ por vocรชs.
Os constituintes de 1988 escolheram a dignidade como linha mestra da Carta de Direitos que nos rege como Estado Democrรกtico. Ela estรก presente como fundamento desse Estado, no inciso primeiro do artigo primeiro da Constituiรงรฃo. E tambรฉm vai espalhado por todo o texto, sempre lembrando que ser digno รฉ ser notado, distinto, azul sobre ouro e nรฃo cinza anรณdino, sem identidade. Tรก lรก no artigo 170, que diz: “A ordem econรดmica, fundada na valorizaรงรฃo do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existรชncia digna, conforme os ditames da justiรงa social โฆโ. Ou no artigo 226, inciso 7: “Fundado nos princรญpios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsรกvel, o planejamento familiar รฉ livre decisรฃo do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientรญficos para o exercรญcio desse direito (โฆ).โ E por aรญ vai. A dignidade รฉ a ideia que aponta para um fundamento de reconhecimento do ser humano como alguรฉm capaz de produzir um ambiente no qual ninguรฉm precisa ser descartado, ignorado, diminuรญdo, exposto ou ameaรงado, enquanto for possรญvel – por todos os meios – evitรก-lo. Porรฉm, รฉ preciso admitir que nem todas as pessoas alcanรงaram essa ideia de uma cidadania que incorporou a dignidade humana como princรญpio. Por isso, recusam a dignidade em nome de outros valores que buscam legitimar com suas atitudes que vรฃo da arrogรขncia ร indiferenรงa. Afirmam ser โpessoas que querem trabalhar, que querem ser livres e que nรฃo aceitam qualquer opressรฃoโ. Mentem, talvez para si mesmos e, com certeza, para os outros. O que querem รฉ continuar em suas ilhas de exclusรฃo, submetendo e explorando, usufruindo sem fazer as contas e sem notar os outros. O que querem รฉ ver o mundo com a lente estreita de seus valores egocรชntricos. Que eles nรฃo chamam assim e se irritam e se ofendem com esses termos. ร รณbvio.
O conceito de dignidade humana รฉ uma invenรงรฃo, das mais ricas e tambรฉm das mais frรกgeis. Quando Aristรณteles, hรก quase dois mil e quinhentos anos, disse que o propรณsito da existรชncia humana รฉ a realizaรงรฃo de sua capacidade racional e o nome que deu a isso foi Felicidade, estava inaugurando a ideia de que ser Pleno, ser Feliz, implicava ser Digno dessa condiรงรฃo de Humanidade e que ela nรฃo era restrita a um ou a uns. O tempo tratou de alargar essa ideia, abandonando, por exemplo, a escravidรฃo que os prรณprios gregos admitiam. Mas nรฃo se pode imaginar que todos aceitem essa resoluรงรฃo sem resistรชncia. Muitos a recusam, passiva ou deliberadamente. Nosso papel entรฃo รฉ enfrentรก-los por meio do bom combate, que รฉ o de unirmo-nos por nossas semelhanรงas em meio ร s nossas diferenรงas, e tornarmo-nos maioria. Sรณ assim a desumanidade poderรก se tornar apenas uma ideia incรดmoda e inรณcua e nรฃo mais a ameaรงa mortal que presenciamos hoje.
Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
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