Irresponsabilidade de quem?

Fernando Mรขnica*

Enquanto nos Estados Unidos, paรญs mais atingido pela COVID-19, o nรบmero de infectados caiu cerca de 75% desde o inรญcio do ano, o Brasil bate, dia apรณs dia, recorde de contaminaรงรตes e mortes diรกrias. O motivo? Em terras ianques, mais de 150 milhรตes de doses foram aplicadas, enquanto que em terras tupiniquins, pouco mais de 19 milhรตes.

Uma das justificativas apresentadas pelo governo federal para ter recusado a compra da mesma vacina usada nos Estados Unidos foi contratual. A empresa farmacรชutica Pfizer exigiu isenรงรฃo de responsabilidade em caso de efeitos adversos decorrentes da vacinaรงรฃo. A pergunta, portanto, รฉ: o Brasil deveria ter aceitado as clรกusulas de nรฃo responsabilizaรงรฃo da Pfizer?

A questรฃo passa pela anรกlise do que se pode chamar de โ€˜risco de desenvolvimentoโ€™. ร‰ dizer, caso algumas pessoas sofram efeitos indesejรกveis de uma vacina fornecida pelo SUS, quem deve arcar com os custos de indenizaรงรฃo? A empresa que desenvolveu o produto (e lucrou com isso) ou toda a coletividade beneficiada pela vacina?

A Constituiรงรฃo de 1988 traz a resposta. Isso porque, havendo um dano individual decorrente de uma aรงรฃo estatal (no caso, a vacinaรงรฃo pรบblica), a Constituiรงรฃo atribui a responsabilidade objetiva ao Poder Pรบblico. Sendo a vacina aplicada pelo SUS, a responsabilidade รฉ estatal, nรฃo cabendo sequer o ajuizamento de aรงรฃo indenizatรณria por cidadรฃos diretamente contra a indรบstria farmacรชutica. A exigรชncia da Pfizer ao governo brasileiro nรฃo traz, portanto, grande inovaรงรฃo, pois meramente veda que Poder Pรบblico ajuรญze eventuais aรงรตes de regresso contra a empresa. Para dar seguranรงa jurรญdica a essa hipรณtese, basta a aprovaรงรฃo de uma lei que contenha essa previsรฃo, tal quais tantas outras leis jรก foram aprovadas para tratar do tema COVID-19.

Nesse ponto, deve-se ressaltar que exigรชncias privadas externas nรฃo sรฃo privilรฉgio de empresas que desenvolvem vacinas contra a maior pandemia da histรณria. Ou alguรฉm jรก esqueceu da Lei Geral da Copa, que previu a responsabilidade da Uniรฃo Federal por indenizar a FIFA no caso de qualquer dano sofrido pela entidade durante a realizaรงรฃo da Copa do Mundo no Brasil?ย 

Voltando ร  questรฃo das vacinas, a clรกusula de isenรงรฃo de responsabilidade รฉ regra geral em paรญses desenvolvidos, que nรฃo possuem o mesmo regramento constitucional vigente no Brasil. Em relaรงรฃo ร  COVID-19, por exemplo, alguns governos simplesmente assumiram o risco da vacinaรงรฃo. Em outros paรญses foram criados fundos pรบblicos para arcar com eventuais indenizaรงรตes. Em um terceiro grupo, acordou-se que a farmacรชutica poderia ser processada por cidadรฃos lesados, mas seria ressarcida pelo Poder Pรบblico em caso de condenaรงรฃo. Num quarto conjunto de paรญses foram contratados seguros, ainda que parciais, para cobertura de eventuais pedidos de indenizaรงรฃo em face do Poder Pรบblico. Em todos os casos, houve, portanto, isenรงรฃo de responsabilidade da indรบstria pelo risco de desenvolvimento das vacinas.

Diante da incerteza em relaรงรฃo a uma situaรงรฃo futura que pode gerar um impacto negativo, quatro sรฃo os tratamentos possรญveis: aceitar o risco, mitigar o risco, transferir o risco ou evitar o risco. Trata-se de exercรญcio clรกssico da gestรฃo de riscos, no qual sรฃo medidos a probabilidade e o impacto da ocorrรชncia de um evento adverso para a tomada de decisรฃo quanto a seu tratamento.

Apรณs sopesar a probabilidade e o impacto dos riscos e das oportunidades decorrentes da vacinaรงรฃo em massa, os principais governos do mundo tomaram a mesma decisรฃo: comprar a vacina com isenรงรฃo da responsabilidade da indรบstria. Ao decidir desta forma, evitaram outro risco de maior probabilidade e de maior impacto: o aumento da contaminaรงรฃo por COVID-19. Em trilha isolada, o Brasil optou por evitar os riscos da vacinaรงรฃo. Com isso, perdeu a oportunidade de diminuir as mortes pela COVID-19. O resultado estรก aรญ: 321 mil e contando.

*Fernando Mรขnica รฉ doutor pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo.

 

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